As trabalhadoras em números
Dos 10 aos 60 anos, as mulheres são mais de 40 milhões da população ocupada no Brasil, ou seja, cerca de quase metade da classe trabalhadora brasileira, sendo 20 milhões de negras Estes números já expressam a vantajosa maneira pela qual o capital se apropria da opressão, anterior ao modo de produção capitalista, criando uma poderosa relação entre exploração do trabalho com a mais-valia e a subordinação de um grupo social para melhor explorar. Esta tese, que em si mesma resguarda um dos grandes e profundos debates entre marxismo e feminismo, apresenta uma visão de mundo a partir da qual a emancipação feminina não será alcançada sem destruir neste momento as poderosas amarras do sistema capitalista, que transformaram o mundo em uma suja prisão. Mas estes números também já apontam que a classe operária feminina no Brasil é atravessada pelo enovelamento, ou pelo “nó” apontado pela importante feminista Heleieth Safiioti, entre gênero e raça. Em base a estes conceitos de uma visão marxista sobre o tema da mulher, vamos analisar a situação das mulheres trabalhadoras em linhas gerais nos dias de hoje e quais respostas programáticas podemos abordar para alentar a batalha pela hegemonia da classe operária ao mesmo tempo em que buscamos que sejam as mulheres trabalhadoras as que tomem os postos na linha de frente dos futuros embates de classe. Claudia Mazzei Nogueira em seu estudo “A feminização do mundo do trabalho”, onde relata a situação das trabalhadoras do telemarketing, aponta que a entrada da mulher no mercado de trabalho, um passo progressista e necessário para incorporação da mulher à produção, se deu de forma precária. Ou seja, ao passo em que houve uma feminização do mundo do trabalho, esta feminização foi acompanhada do que Karl Marx chamou de “cheap labour” em sua grande obra O Capital. Este conceito, em português “trabalho barato”, buscava dar conta de demonstrar que os mecanismos do capital enxergaram uma relação vantajosa na subordinação de grupos sociais por seu gênero, raça ou sexualidade, ou até mesmo idade, e conseguiram dar passos importantes para um rebaixamento “natural” dos salários do conjunto da classe. Assim como o exército industrial de reserva – ou, melhor dizendo, a massa de desempregados – as mulheres e crianças eram utilizadas como ameaça permanente: sempre haverá alguém com um trabalho mais barato do que o seu. Destes fundamentos surgem a desigualdade salarial e a precarização do trabalho feminino. Ainda que nossa luta seja para colocar fim a toda forma de exploração e não apenas combater os seus “excessos”, é preciso que nos coloquemos na linha de frente da batalha pelo fim da precarização do trabalho e pela igualdade salarial. O trabalho precário no Brasil, inclusive, atinge em cheio categorias com ampla maioria de mulheres como a limpeza. As mulheres negras, além de serem maioria entre as terceirizadas, também são maioria entre as empregadas domésticas, uma herança que carrega tintas da escravidão em nosso país. Nas moradias das classes média e alta, a realização do trabalho doméstico é quase exclusivamente feminina, como apontamos acima, e essa é a ocupação de 5,9 milhões de brasileiras, o equivalente a 14% do total das ocupadas no Brasil [4] . Destas mulheres, cerca de 65% são negras. 18% das mulheres negras ocupadas no Brasil são empregadas domésticas com uma renda média de R$ 788,00 [5] . No campo, as trabalhadoras pobres sofrem com as condições arrebatadoras de trabalho que destroem seus corpos. Aí, a reforma da previdência terá um impacto devastador. É um retrato do Brasil profundo e da milenar opressão de gênero que arranca a vida das mulheres. No chão das fábricas, onde está a ditadura patronal, as operárias são submetidas ao repetitivo e intensivo trabalho fabril, enclausuradas na linha de produção, alienadas do produto que criam, subordinadas ao assédio moral constante e também convivendo com o machismo e o atraso na própria classe operária, entre seus colegas que ainda não entenderam que a opressão é utilizada pela classe dominante para dividir e enfraquecer a nossa classe. A divisão de postos de trabalho nas fábricas entre homens e mulheres é muito forte, muitas vezes relegando grande parte do trabalho manual às mulheres. Esta divisão reforça o que chamamos de divisão sexual do trabalho, muitas vezes usada como justificativa para exigir maior qualificação dos homens para funções menos alienadas. Essa precarização se expressa de forma grotesca na diferença salarial entre homens e mulheres, entre negros e brancos. Em 2015 as trabalhadoras brasileiras ganhavam 23,6% a menos que os trabalhadores homens [6] . Segundo o IBGE, “Essa disparidade entre os gêneros também pode ser observada na análise da renda da população. Os dados mostram que a renda média nacional do brasileiro é de R$ 2.043, mas os homens continuam recebendo mais. Enquanto eles ganham, em média, R$ 2.251, elas recebem R$ 1.762 (diferença de R$ 489) [7] ”. As mulheres negras brasileiras ainda não conseguiram alcançar nem 40% do rendimento total dos homens brancos, segundo o IPEA. Mulheres terceirizadas, temporárias, estagiárias, informais, domésticas, donas de casa, desempregadas. O batalhão de professoras e suas jornadas “extra-oficiais”, suas vozes roucas e o salário de miséria compõem o cenário feminino da mão de obra assalariada no Brasil. Este retrato da precarização é extenso e sem limites. As reformas em curso buscam potencializar este cenário, dando mais mecanismos à classe dominante para que aumente seus lucros com a exploração do trabalho feminino e das mulheres negras em especial. Uma resposta imediata a esta situação deveria ser tomada pelo conjunto dos sindicatos, batalhando pela anulação da lei da terceirização, rechaçando a divisão das fileiras operárias e impondo a efetivação de todos os terceirizados sem necessidade de concurso público, exigindo os mesmos direitos. A bandeira de “igual trabalho, igual salário” também deveria ser ordem do dia, exigindo a igualdade salarial entre homens e mulheres e entre negros e brancos, especialmente combatendo a desigualdade salarial das mulheres negras. Todos os direitos para as empregadas domésticas, imposição da jornada de trabalho conquistada e direito a sindicalização e organização seriam medidas mínimas para enfrentar a brutalizante exploração da massa feminina negra no nosso país, mas que deveria ter como horizonte a exigência de emprego pleno para que todas as mulheres tivessem acesso a empregos que não lhes impusessem as intermináveis jornadas do trabalho doméstico alheio, ao mesmo tempo em que este deveria ser socializado. O relógio interminável da dupla jornada de trabalho Uma das grandes conquistas capitalistas a partir da entrada da mulher no mercado de trabalho foi a contraditória relação entre o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo, privado, dentro do “lar”. Este nome dócil que nos vendem nas novelas e nos contos de fadas, ao contrário, nada tem a ver com a realidade do que se vive dentro de casa – para além das relações afetivas que possam existir, claro. A opressão de gênero já relegava às mulheres um papel de “dona do lar”, entretanto, ao entrar no mercado de trabalho pra reforçar a força produtiva, o capitalismo transformou o que seria uma contradição em resposta para manter os baixos salários, não ter novos gastos com a manutenção das condições de vida dos operários e operárias e “de quebra” manter as mulheres presas a um tipo de serviço, o doméstico, que funciona como corolário da opressão de gênero. Isso se chama dupla jornada de trabalho. Existem muitos estudos sobre o tempo livre e o que fazer com ele. Mas o fato é que as mulheres trabalhadoras, em sua grande maioria, não têm opção. O último estudo de fevereiro deste ano mostrou que a diferença de carga de trabalho total entre homens e mulheres aumentou nos últimos anos. Enquanto em 2005 as mulheres trabalhavam 6,9 horas a mais por semana do que os homens, em 2015 a diferença cresceu para 7,5 horas, segundo o IBGE. Ou seja, num período de 10 anos o tempo gasto por homens com atividades profissionais diminuiu quase 3 horas e continuaram ocupando 10 horas semanais com tarefas domésticas. Mas e as mulheres? As mulheres ocupam 24,4 horas semanais em tarefas domésticas, mais do que o dobro. Somadas todas as atividades, a jornada total dos homens caiu de 48,4 para 46,1 horas, enquanto a das mulheres foi de 55,3 horas para 53,6. Estes dados mostram uma cruel realidade capitalista. Para não ter gastos “excessivos” com a manutenção de vida do operário, é muito mais funcional a todas as patronais que sejam as mulheres, por sua “condição natural”, as que garantam a alimentação, a lavagem das roupas, a limpeza da casa e o cuidado com as crianças, tudo isso após a sua jornada de trabalho, somando horas e horas de mais trabalho invisível e gratuito. Entretanto, este trabalho é socialmente necessário para a produção, já que um operário ou a própria operária não tem condições de seguir reproduzindo sua força de trabalho sem estar alimentado, sem um uniforme limpo. A experiência mais avançada, na Rússia de 1917, levou à socialização do trabalho doméstico. Lavanderias, restaurantes e creches comunitárias: as mulheres não precisavam fazer comida em casa, lavar e passar a roupa, ou arcar integralmente com o cuidado das crianças – que avançou para experiências de educação coletiva –, mas podiam ter estes serviços e produtos garantidos pelo Estado. A maternidade roubada, o direito ao aborto negado A profundidade da questão da mulher está dada pelo fato de que ela é, em essência, o elemento vivente no qual se entrecruzam todos os fios decisivos do trabalho econômico e cultural, da produção e da reprodução, como dizia Leon Trotsky. As reformas que querem nos enfiar goela abaixo mostram essa profundidade: o governo tenta se apoiar na suposta expectativa de vida maior das mulheres para reduzir o benefício na aposentadoria. Não faltam também argumentos como dizer que as mulheres trabalham menos porque têm a licença maternidade. Será? As mulheres trabalhadoras, quando precárias, são pressionadas a não engravidar. O assédio moral, praticamente legalizado entre as empresas terceirizadas, é uma prática recorrente para evitar que a empresa tenha que arcar com este direito. Além disso, não são todas as empresas que garantem a licença maternidade, que hoje no Brasil é de apenas 6 meses no serviço público e de 4 a 6 meses no privado, o que significa diretamente um roubo do direito da mãe de estar com seu filho. Ao mesmo tempo, a licença paternidade é de 20 dias no serviço público e de 5 a 20 dias no privado, impondo de antemão que sejam as mulheres a cuidar dos filhos. E por que não poderiam ser os dois? Porque isso impactaria no lucro das empresas. Combinado a isso, a reforma trabalhista recém-aprovada traz a escandalosa medida de liberar o trabalho insalubre de nível baixo e médio para trabalhadoras grávidas e lactantes. Ou seja, o lucro deles vale mais do que as nossas vidas. Uma mulher trabalhadora pode chegar a ser demitida por ter engravidado – e nem precisa, imaginem as milhares de trabalhadoras informais que não têm absolutamente nenhum direito. A contradição é que bombardeiam as mulheres com uma “felicidade compulsória da maternidade”, mas a realidade é outra se isso prejudicar os lucros patronais. A opção, entretanto, de interromper uma gravidez por livre e espontânea vontade é criminalizada em nosso país, sendo permitida apenas em casos de estupro ou risco de vida para o feto ou para a mãe. O sonho da maternidade, então, não existe para todas. Assim como a possibilidade de decidir sobre o próprio corpo, de exercer este “triste direito” que é abortar, tampouco é uma possibilidade para todas já que é criminalizado pelo Estado. O que dizer, então, da situação das creches que deveriam ser espaços de educação infantil, avançando inclusive para experiências de educação coletiva, que terminam sendo tratados pelos governos como verdadeiros depósitos de crianças? É preciso lutar pela licença maternidade de 1 ano com todas as condições garantidas ao mesmo tempo em que lutamos pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito. Emancipadas no capitalismo? A vida das mulheres trabalhadoras vale mais que o lucro dos capitalistas Este pequeno retrato da situação da classe trabalhadora feminina no Brasil mostra que é preciso enfrentar a sociedade capitalista para conquistar a emancipação das mulheres. É uma utopia acreditar que a emancipação das mulheres vai se dar ao mesmo tempo em que se mantêm as condições de exploração de uma massa feminina que compõe a classe operária. Sem arrebentar com as estruturas sociais e econômicas existentes ou, dizendo de outra forma, sem preencher de conteúdo anticapitalista cada uma de nossas lutas e conquistas, a tendência natural do sistema capitalista é se reinventar, se apropriar, cooptar e domesticar cada passo que nós damos na conquista e ampliação de direitos, transformando nossa energia e nossa luta em matéria inofensiva contra o capital e muitas vezes em fortalecimento da estrutura atual vigente. É por isso que a luta das mulheres precisa ser anticapitalista. Há 100 anos da grande obra da classe operária russa, que tomou o céu por assalto, o gigante brasileiro começou a se levantar. E como diria o revolucionário russo Leon Trotsky, os que lutam com mais força pelo novo são os que mais sofreram com o velho. E a face feminina da classe operária no Brasil profundo, do subsolo da exploração capitalista, de norte a sul do país sangrando frente à opressão de gênero e raça, não tenhamos dúvida: será um incansável exército na revolução brasileira. Fonte: Esquerda Diário
Do ponto de vista das principais categorias femininas é fato que aquelas ligadas ao “cuidado natural”, como professoras, enfermeiras, empregadas domésticas [2] e limpeza, são amplamente femininas, conservando o elemento da opressão de gênero como fundamento principal da exploração capitalista, rebaixando os salários e apresentando estas profissões como uma “extensão do lar”. Ainda assim, de 2003 a 2011 se viu um aumento de 44,5% a 58,4% de mulheres trabalhadoras na indústria, e 55,4% a 73,4% de mulheres na construção civil. 94,8% dos trabalhadores domésticos são mulheres [3].
A precarização tem rosto e é de mulher
Mais do que a divisão do trabalho doméstico entre homens e mulheres, que evidentemente é uma atitude elementar para enfrentar a opressão de gênero que querem impor às mulheres trabalhadoras, as ações mais fantásticas da classe operária mundial mostraram que esse serviço doméstico que aprisiona as mulheres dentro de casa, em um trabalho atrofiante e esgotante, deveria ser socializado. O fundamento disto é o simples fato de que é um trabalho socialmente necessário, portanto não deveria estar sob a responsabilidade individual.
Numa sociedade capitalista é impossível implementar essa socialização, assim como a redução da jornada de trabalho sem redução salarial. Toda a tecnologia que existe não serviu para reduzir ao mínimo o serviço doméstico, ao contrário, vemos um aumento do tempo que as mulheres gastam de suas vidas. É um relógio interminável, pois é uma jornada sem limites, um trabalho repetitivo onde a cobrança vem por parte dos próprios familiares. Arrebentar com esta estrutura de opressão é uma tarefa fundamental, lutando por creches, lavanderias e restaurantes garantidos pelo Estado mas também pela redução da jornada de trabalho sem redução salarial, para que todos trabalhem 6 horas e 5 dias por semana, enfrentando assim o desemprego e exigindo o salário mínimo do DIEESE.