Locomover-se por uma cidade como São Paulo é, para a grande maioria dos moradores, uma batalha inglória: ruas entupidas de carros, ônibus apinhados de passageiros, transportes coletivos insuficientes nas periferias, calçadas apertadas, ruas esburacas e mal iluminadas. Será que essa missão para mulheres e homens é igualmente difícil, e seus efeitos da mesma forma penosos para ambos os gêneros?
O psicólogo social e pesquisador José Hercílio, que também é padre na paróquia Maria Mãe da Igreja, localizada no bairro de M’Boi Mirim, zona sul de São Paulo, desenvolve há três anos um estudo de doutorado pela Fundação Getúlio Vargas sobre os conflitos vividos pelas mulheres na mobilidade urbana.
Hercílio trabalha há 20 anos com as mulheres da zona sul, que para ele são “as que mais intervém na comunidade”. Seu primeiro trabalho como pesquisador foi com os clubes de mães da região, “para entender esse movimento histórico de luta contra as agruras da vida.”
Foi nas atividades de base com as mulheres – tanto nas pesquisas quanto nos trabalhos da paróquia -, que Hercílio se deu conta: se por um lado as mulheres mobilizam a comunidade, por outro o espaço público não é feito para elas e suas necessidades específicas.”O transporte público e toda a mobilidade é pensada para um sujeito universal, o homem, mas a vida não é assim, ela é heteogenea”
CartaCapital: Por que o senhor decidiu estudar a mobilidade urbana a partir de um recorte de gênero?
José Hercílio: Como eu me relaciono muito com as mulheres da comunidade – porque são elas que fazem as coisas acontecerem e melhorarem, que atuam -, eu quis ir a fundo nessa tensão que é para elas mover-se pela cidade e pelo bairro, e também poder propor algo, porque acredito na função social da pesquisa. Aqui em M’Boi Mirim as mulheres sofrem muito; o problema da mobilidade é grave, e as políticas públicas são homogêneas, ou seja, não são feitas para elas e suas especificidades. Para mim isso começou a aparecer quando elas não chegavam nas atividades que elas mesmas tinham desenvolvido.
CC: E a mobilidade urbana é mais difícil para as mulheres?
JH: Sim. No estudo ouvimos as mulheres por faixas etárias e depois por questões específicas. A principal queixa das mais jovens é com a segurança, violência e o assédiosexual. Elas têm medo de sair de casa para estudar, para o lazer – as mães não permitem que elas saiam sozinhas para ir ao cinema, aos espaços culturais -, e o que elas dizem é que a violência urbana restringe o direito de ir e vir.
Já as mulheres na fase adulta sofrem todos os problemas juntos. Os ônibus na periferia costumam passar em uma avenida central, mas mal circulam pelo bairro, então elas têm de caminhar muito. Isso é feito em caminhos sem calçadas, ruas esburacadas onde elas disputam o espaço com os carros e motos. São elas que saem mais cedo de casa, e muitas vezes são assaltadas logo de manhãzinha nesse trajeto.
Quando vou fazer grupo de trabalho nos chamados fundão elas reclamam de tudo: motoristas mal educados, ônibus que atrasam demais e os filhos perdem a escola por isso – e elas consequentemente perdem o dia de trabalho -, não conseguem chegar ao posto de saúde – e são as mulheres que mais utilizam esse serviço -, ou seja, elas não conseguem se locomover dentro do próprio bairro.
CC: A falta de segurança é a maior queixa?
JH: Não sei se a maior, mas é um problema grave. Com transporte longe de casa e ruas mal iluminadas, a opção é não sair. Muitas deixam de estudar à noite – já que trabalham durante o dia -, porque têm medo. Agregada a isso tem uma outra questão que são os empregos muito distante de casa. Elas gastam em média quatro horas indo vindo do trabalho. Não dá para fazer mais nada.
CC: Sem suporte, as possibilidades das mulheres estão sendo limitadas.
JH: O espaço público não é acolhedor para as mulheres, desde que o mundo é mundo é assim. À elas ficou reservado o ambiente privado, onde elas vão fazer mil coisas sem receber por isso. As mulheres foram ocupando os espaços públicos como resistência e para a sobrevivência também. Podemos dizer que o espaço público é avesso às mulheres.
CC: O seu estudo é na periferia. Há um diferença da mobilidade entre mulheres ricas e pobres?
JH: Sim. As mulheres brancas e de classe social abastada moram no centro, escolhem o tipo de transporte que vão utilizar, muitas vezes nem sabe quais ônibus que fazem chegar na casa delas. Elas moram em bairros com ruas iluminadas, há mais segurança, as ruas são bem asfaltadas, com calçadas. Os bairros periféricos são um problema social em si. A estratégia do poder público com esses locais é muito perversa, porque espera que esses bairros se formem para depois levar alguma coisa, que é sempre pouca, e cuja a reivindicação é mobilizada pelas mulheres.
CC: Na periferia os homens não vivem dificuldades semelhantes?
JH: A pesquisa de origem e destino elaborada pelo Metrô comprova que os transporte público é homogêneo, mas o cotidiano é heterogêneo. Os homens usam mais o carro, as mulheres andam mais a pé e se locomovem de maneira muito mais diversa, especialmente porque os cuidados e a gerência da vida da família é feita por elas, então elas sentem e experimentam a cidade de um jeito muito mais integral do que os homens.
Não podemos pensar a mobilidade urbana a partir de um sujeito universal, do homem. A experiência da vida não funciona assim. O urbanismo já está discutindo isso, mas na mobilidade ainda é incipiente. Precisamos discutir a diferença funcional dos espaços públicos, e as mulheres têm um comportamento menos uniforme.
O problema dos cuidados é algo central. Está naturalizado que elas têm de tomar conta de tudo e de todos, e não se dá nem suporte para isso. A mobilidade para a mulher é muito complexa, levando em conta essas múltiplas responsabilidades que foram historicamente legadas a elas. E nós sabemos que a mobilidade é umas das coisas que mais incidem na qualidade de vida, especialmente nos grandes centros urbanos.
Fonte: Carta Capital