Há três anos, quando a economia dava os primeiros sinais de estagnação, o Brasil apostou todas as fichas na austeridade fiscal. Ainda na gestão petista, o então ministro da Fazenda Joaquim Levy não hesitou em operar a navalha nas despesas públicas, nem assim evitou a recessão que fez o PIB encolher 7,2% em 2015 e 2016.
Após a destituição de Dilma Rousseff, as peças na equipe econômica mudaram, mas o diagnóstico jamais foi revisto. Ao contrário, Henrique Meirelles, colaborador do governo ilegítimo, optou por uma superdosagem do “amargo remédio”. Por meio de uma emenda à Constituição, aprovada pelo Congresso, congelou os gastos da União por duas décadas.
O sacrifício, costumava repetir, seria recompensado pela retomada dos investimentos privados, o impulso que faltava para o País decolar. Ao cabo, teve de disfarçar o sorriso amarelo ao celebrar o pífio crescimento de 1% verificado no ano passado.
Para 2018, não há o mais pálido sinal da arrancada econômica propalada no fim do ano passado, após a aprovação da reforma trabalhista, que alterou mais de cem artigos da Consolidação das Leis do Trabalho. Dia após dia, a realidade impõe-se à propaganda.
Na segunda-feira 16, foi a vez de o Fundo Monetário Internacional revisar para baixo, de 2,3% para 1,8%, a sua previsão de crescimento do PIB brasileiro. No mesmo dia, os analistas do mercado financeiro ouvidos pelo Banco Central também reduziram as suas projeções. Segundo o último boletim Focus, agora eles esperam uma alta de 1,5%, praticamente a metade do que anteviam em janeiro.
O sacrifício não é, porém, generalizado. Enquanto o Congresso e o governo garantem benesses para o alto funcionalismo e as empresas, a maioria da população, em especial as crianças, que não contam com lobistas poderosos em Brasília, paga a conta do ajuste.
Os indicadores apontam para um quadro de profunda regressão social. Na Saúde, as vítimas da austeridade se avolumam. Pela primeira em 26 anos houve um aumento da taxa de mortalidade infantil. Em 2016, foram 14 óbitos a cada 100 mil nascimentos, alta de 5% em relação ao ano anterior. Até então, o País apresentava redução anual média de 4,9% desde o início dos anos 1990.
Por desleixo no programa de imunização, ressurgem doenças há tempo consideradas extintas. Até a quarta-feira 18, eram 677 casos confirmados de sarampo em seis estados, além de outros 2.724 sob investigação.
Em 312 municípios, nem a metade das crianças com menos de 1 ano de idade foi vacinada contra a poliomielite. Erradicado desde 1989, o poliovírus, responsável pela moléstia que leva à paralisia, só precisa de uma brecha para voltar a se instalar em solo pátrio.
Na verdade, boa parte das conquistas sociais encontra-se ameaçada. De 2003 a 2014, ao menos 29 milhões de cidadãos ascenderam socialmente e saíram da condição de miséria, segundo o Banco Mundial. Agora, o problema volta a assombrar os brasileiros.
No ano passado, a extrema pobreza cresceu 11% e atingiu 14,8 milhões de indivíduos, atesta um recente levantamento da LCA Consultores, a partir de microdados da Pnad Contínua do IBGE. Com o resultado, o contingente de miseráveis representava 7,2% da população em 2017, acima dos 6,5% verificados no ano anterior. A consultoria adotou o critério do próprio Banco Mundial, que considera “extremamente pobre” quem sobrevive com menos de 1,90 dólar por dia.
A Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, divulgada em dezembro passado, já revelava um expressivo aumento da pobreza. O Brasil encerrou 2016 com 24,8 milhões de habitantes, 12,1% da população, vivendo com menos de um quarto de salário mínimo, o equivalente a 220 reais.
O resultado representa um crescimento superior a 50% em apenas dois anos. No fim de 2014, quando a crise esboçava os primeiros sinais, havia 16,2 milhões de brasileiros com essa faixa de renda, empregada pelo governo federal como critério para a concessão do Benefício de Prestação Continuada aos idosos em situação de miséria.
O cenário é ainda mais dramático diante do desmonte da rede de proteção social. Desde o ano passado, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) tem alertado para a existência de 7 milhões de pobres no País que não recebem nenhum tipo de assistência social.
“Se o Brasil não voltar a crescer de forma sustentada e não tiver um revigoramento do mercado de trabalho, simultaneamente a uma correção nos valores de transferência de renda, corremos o risco de voltar ao Mapa da Fome”, alertou, em dezembro passado, o brasileiro José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO.
“Com o agravamento do desemprego, a queda na renda das famílias e o avanço da pobreza, deveria haver um aumento do número de beneficiários do Bolsa Família”, observa a economista Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social.
“Houve, porém, uma mudança da orientação política. Antes, os municípios eram incentivados a fazer a busca ativa de habitantes em situação de vulnerabilidade para incluí-los no programa, até mesmo com incentivos financeiros da União. Agora, o governo federal sinaliza que prefeitura eficiente é aquela que reduz gastos na área. Além disso, há uma desarticulação dos serviços de proteção social. Faltam profissionais e muitas unidades fecharam ou reduziram o seu horário de atendimento.”
Triste retrato do desemprego que assola o País, o Vale do Anhangabaú, em São Paulo, amanheceu na segunda-feira 16 com uma quilométrica e serpenteante fila de desocupados. A multidão começou a se aglomerar na região no dia anterior, em busca de uma das 1,8 mil vagas de empregos formais oferecidas por um mutirão organizado pelo Sindicato dos Comerciários. Pegos de surpresa, os organizadores tiveram de limitar o atendimento a 5 mil senhas distribuídas entre os candidatos.
Embora o governo se apresse em anunciar a reativação do mercado , a verdade é que Temer nem sequer conseguiu suprir as vagas perdidas durante a sua gestão. Em maio de 2016, quando foi alçado ao poder sem voto, a taxa de desocupação atingia 11,2% da população economicamente ativa, um total de 11,4 milhões de desempregados, segunda a Pnad Contínua, pesquisa oficial de emprego do IBGE. Dois anos depois, no trimestre encerrado em maio, o problema atingia 12,7% da força de trabalho, algo em torno de 13,2 milhões de brasileiros.
Para justificar o aumento da taxa de mortalidade infantil, após quase três décadas de melhora do indicador, o Ministério da Saúde atribuiu o problema ao surto de Zika e à crise econômica. Nenhuma palavra sobre os constantes cortes e contingenciamentos de recursos impostos à área nos últimos anos.
“Pode até ser que a Zika tenha contribuído para aumentar os óbitos de crianças, mas não há nenhum estudo que comprove essa relação. O mais provável é que esse fator teve um impacto meramente residual”, afirma Isabela Soares Santos, pesquisadora da Fiocruz e diretora consultiva do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde. “Mas há uma vasta literatura científica que comprova a correlação entre as medidas de austeridade e a piora dos indicadores de saúde.”
Na crise econômica de 2008, vários países da União Europeia tiveram de promover cortes de gastos sociais e aprovar reformas impostas pelos credores. Pouco depois, demonstra um estudo coordenado pela especialista, aumentaram os casos de depressão, ansiedade e suicídio, além de crescer a demanda por tratamentos de doenças crônicas, com piora no acesso aos serviços de saúde, devido às barreiras econômicas.
“No mínimo, seremos tão afetados pela austeridade quanto os europeus. Mas, em razão da baixa escolaridade, da falta de saneamento básico, da deficiente rede de proteção social, é possível que o impacto seja muito pior.”
Não é difícil explicar a correlação entre o desmonte de políticas sociais e a piora dos indicadores de saúde. Em 2013, o epidemiologista Maurício Barreto, professor da Universidade Federal da Bahia, orientou um estudo publicado na prestigiada revista científica britânica The Lancet, a revelar que o Bolsa Família reduziu em 17% a mortalidade das crianças com menos de 5 anos nos munícipios com maior cobertura do programa.
“Se essas transferências de renda deixam de ocorrer por alguma razão, a tendência é aumentar o número de óbitos infantis, por conta da piora das condições de vida da população desassistida”, resume. “O desmonte da rede de proteção social traz inevitáveis reverberações para a saúde.”
De certa forma, uma pesquisa publicada em maio pela revista americana PLoS Medicineanteviu o problema. Com base em modelos de simulação matemática, previu que o Brasil poderá ter até 20 mil mortes a mais de crianças até 2030, caso os cortes persistam nos programas Saúde da Família e Bolsa Família.
“Partimos de estudos feitos ao longo dos últimos dez anos sobre os determinantes da mortalidade para menores de 5 anos e sobre os efeitos de políticas públicas que, de algum modo, contribuíram para mitigar o problema. Utilizamos também as projeções do Banco Mundial sobre o aumento da pobreza. Feito isso, verificamos os prováveis efeitos da Emenda nº 95 sobre a assistência social e sobre a saúde”, explica Davide Rasella, pesquisador do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA e do Imperial College London, que liderou o estudo feito em parceria com colegas de instituições no Brasil, nos EUA e no Reino Unido.
Segundo o especialista, mesmo que a economia volte a crescer e a pobreza recue nos próximos anos, o cenário inspira preocupação, pois o Brasil restringiu os gastos sociais por 20 anos. “Os planos de austeridade são elaborados a partir de complexos raciocínios macroeconômicos, mas nunca é feita uma avaliação dos custos sociais das medidas, inclusive em termos de morbidade e mortalidade da população”, lamenta Rasella.
No caso da baixa cobertura vacinal, também não é difícil encontrar os rastros da austeridade. O governo federal tem atribuído a responsabilidade quase que exclusivamente à população, que não se sentiria mais ameaçada pelas antigas moléstias ou teria passado a acreditar nas bobagens difundidas pelas redes sociais, sobre a suposta ineficácia da imunização.
Por meio de nota, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde contestou a exótica tese. Observou que o Ministério da Saúde tem, desde 2014, dificuldade para manter os estoques, além de lembrar que a ampliação do número de indivíduos vacinados depende da cobertura da rede de atenção básica, “que, no momento, se encontra estrangulada pelo contingenciamento de recursos, decorrente do Novo Regime Fiscal”, o congelamento estabelecido pela Emenda nº 95. “Não dá para o poder público se eximir da responsabilidade.
O governo é responsável pelas campanhas de conscientização, pela oferta e distribuição dos insumos, pela mobilização das equipes”, enumera Luiz Augusto Facchini, professor do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas e dirigente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva .
De 2014 a 2016, o gasto total com ações e serviços públicos de saúde caiu 3,6%, passando de 257 bilhões para 248 bilhões de reais. Nos últimos três anos, também se acentuou a redução do número de leitos de internação.
Se hoje a população padece das longas filas no Sistema Único de Saúde, o suplício tende a ser cada vez maior. Os gastos da União estão congelados e só podem ser reajustados pela inflação do ano anterior, mas a demanda pelos serviços não para de crescer.
Nos últimos três anos, 3 milhões de usuários deixaram os planos privados de saúde e tornaram-se dependentes da rede pública. Com o envelhecimento da população e o aumento da carga de doenças com tratamento mais longo e custoso, a exemplo do câncer, a pressão será cada vez maior.
O problema, avaliam numerosos especialistas, não se resolve apenas com uma gestão eficiente. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o Brasil aplicou 1.391 dólares por habitante em 2015, valor ajustado pela paridade do poder de compra.
Apenas 43% dessa soma, 595 dólares, provém de investimentos públicos. O gasto das três esferas de governo é inferior ao de vários vizinhos da América do Sul e assemelha-se aos dispêndios da Namíbia e da África do Sul.
Durante a vigência da Emenda nº 95, as perdas projetadas para o SUS variam de 168 bilhões a 738 bilhões de reais até 2036, a depender do ritmo anual de crescimento do PIB. Apesar do sacrifício imposto à maioria, o Brasil deverá abrir mão de mais de 283,4 bilhões de reais em renúncias fiscais em 2018.
Estimado pela Receita Federal, o valor é superior à soma dos orçamentos da Educação e da Saúde: 107,5 bilhões e 131,4 bilhões, respectivamente. Na disputa pelo Orçamento também prevalecem os interesses de “quem pode mais”. No texto recém-aprovado pelo Congresso estão liberados reajustes para os servidores federais em 2019.
E acabou excluído o item que obrigava o governo a reduzir as despesas de custeio administrativo, como combustíveis e diárias, em 5%. A austeridade, como se vê, é um mal necessário… Para os outros.
Darwinismo sanitário
O ex-ministro da Saúde Arthur Chioro demonstra preocupação com o recente aumento da mortalidade infantil, interrompendo uma trajetória de queda de quase três décadas. Segundo o professor do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp, a aprovação da Emenda nº 95 tende a agravar o quadro.
O congelamento de gastos públicos por 20 anos, prevê, reforçará o “darwinismo social e sanitário” no País. A íntegra da entrevista está disponível em www.cartacapital.com.br.
CartaCapital: O Ministério da Saúde atribui o aumento da mortalidade infantil ao surto de Zika e à crise. O senhor concorda com o diagnóstico?
Arthur Chioro: Chega a ser bizarro o governo apresentar essa desculpa. Na verdade, atribui-se o fenômeno à diminuição dos partos em decorrência da epidemia de zika, até porque não houve aumento significativo da mortalidade pelo vírus. Ou seja, como diminuiu o número de nascidos vivos porque as mulheres ficaram assustadas, isso supostamente alterou a taxa de mortalidade infantil. É um absurdo. O que vemos hoje é resultado da política desastrosa do atual governo, que agravou o desemprego, reduziu a proteção trabalhista, diminuiu o poder de compra da população, além de fragilizar os programas sociais.
CC: Quando o senhor deixou o Ministério da Saúde, no fim de 2015, qual era o cenário?
AC: Vínhamos reduzindo a mortalidade infantil, ano a ano, em uma média de 4,9%. Deixei a Pasta com uma taxa de 13,3 óbitos a cada 100 mil nascimentos (Em 2016, chegou a 14). Nos próximos anos, com a vigência da Emenda nº 95, que congela os gastos públicos por 20 anos, o problema tende a se agravar. Teremos um impacto muito forte sobre mortes e internações evitáveis de crianças e idosos.
CC: Com o envelhecimento da população e o aumento da carga de doenças que demandam longos tratamentos, como o câncer, há uma tendência de aumento da demanda. Qual é o sentido de congelar os investimentos públicos em saúde neste cenário?
AC: É desastroso. Publiquei um estudo a respeito. Em 2022, cerca de 70% dos gastos da saúde terão de ser arcados por estados e municípios. Hoje, eles bancam cerca de 48%. Precisam elevar as despesas para compensar a retração de investimentos do Ministério da Saúde, por conta da Emenda nº 95. Concretamente, em 2018, já temos uma diminuição dos recursos disponíveis. Conhecendo um pouco a situação econômica dos estados brasileiros, você realmente acha que eles aumentarão os gastos? Mantida essa situação, veremos a falência do sistema público de saúde. Não há como o mercado absorver a demanda, até porque 78% da população brasileira é “SUS-Dependente”.
CC: Alguns economistas atribuem o desequilíbrio das contas do governo aos “elevados gastos” com saúde e assistência social. Como conciliar responsabilidade fiscal com a necessidade de investir cada vez mais em serviços essenciais à população?
AC: Tem uma malandragem nessa história. Essa turma diz que o Brasil gasta muito com saúde, mas não diferencia o que é despesa pública ou privada. No fundo, todos os 208 milhões de brasileiros se beneficiam da saúde pública. Cobertura vacinal, SAMU, Vigilância Sanitária, transplantes, hemodiálises, medicamentos de alto custo… Tudo isso é custeado pelo SUS, e só por ele. Os planos se eximem da responsabilidade. E menos de um quarto da população se beneficia dos investimentos privados. É o que chamo de darwinismo social e sanitário. Só sobreviverão os mais fortes, aqueles que têm grana.
Fonte: Carta Capital