“Minha família plantava para comer. Fui alfabetizada aos nove anos, ainda na roça, e depois fui para escola. Fazer universidade era um sonho distante, mas eu tinha muita vontade.” Foi com esse desejo que Lívia Milena, 29 anos, veio para São Paulo no fim de 2010. Ela e a família não pouparam esforços para que entrasse no curso de serviço social, anseio concretizado graças ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), que subsidiou os estudos. Mas junto da formatura, em 2016, vieram os desencantos.
“Eu tinha pouca instrução. Não entendi nada do funcionamento daquele universo. A faculdade me fez acreditar que aquele contrato era como uma bolsa integral, e eu não sabia que teria que pagar por isso quando formada. Apesar da frustração, terminei o curso com muito custo e apoio e fui à luta por emprego na minha área, que demorava a vir”, conta a assistente social formada na Faculdade de São Paulo.
As políticas de expansão do ensino superior no Brasil são das mais significativas investidas dos governos Lula e Dilma para a democratização da sociedade de modo geral. Mais universidades públicas, cotas, além do Prouni e do Fies, permitiram que assim como Lívia – mulher negra nascida em um família onde não havia sequer um integrante com graduação -, milhares de jovens que pareciam ter o seu destino marcado pelo subemprego, pudessem ambicionar o protagonismo de suas vidas a partir da escolha de uma profissão.
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A evolução positiva na educação, com a quase universalização do ensino fundamental – 99,2%, segundo o Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) – e o maior ingresso no ensino superior – em especial na gestão do ex-presidente Lula, quando os estudantes matriculados no ensino superior saltaram de 3,96 milhões para 6 milhões -, não se reverteu, no entanto, em mais e melhores postos de trabalho para esses jovens.
Economistas e especialistas em juventude apontam para causas difusas desse mal estar social: crise econômica, perda de direitos trabalhistas e precarização dos postos de trabalho, fim da sociedade essencialmente industrial, desvalorização dos diplomas. A consequência são jovens que batalham muito para se formar, mas que não conseguem seguir a trajetória sonhada, e permanecem em uma espécie de limbo da juventude – marcada por ser um período de transitoriedade para a vida adulta -, e que parece nunca acabar.
Mas afinal, quem é o jovem de hoje em dia?
Segundo o economista Márcio Pochmann, quando a expectativa de vida circundava os 40 anos, num passado recente, aqueles que tinham entre 15 e 24 anos viviam o período que marca essa transitoriedade.
Hoje, a velocidade e a complexidade das transformações sociais, em especial as mudanças na economia e no mundo do trabalho, fazem com que os conceitos que definem adolescência, juventude, vida adulta e velhice estejam cada vez menos definidos para dar conta do que são esses ciclos da vida.
Com as novas configurações de trabalho, não conseguir alcançar a almejada carreira e independência financeira, está intimamente ligada ao fato dessas pessoas não conseguirem a autonomia em suas vidas.
“Na sociedade urbana e industrial, o acesso à educação dava conta de uma trajetória linear. Um engenheiro ganhava a vida por cinquenta anos com o acumulo de conhecimento dos tempos de universidade. Agora estamos na sociedade dos serviços e as trajetórias são zig zag, onde a educação tem de ser permanente para dar conta das mudanças constantes no mercado”, explica Pochmann. Nesse sentido, o tempo de preparação para o ingresso no mercado de trabalho pode ser bem maior, com a educação e a formação estabelecendo uma relação contínua ao longo da vida.
Foi o que a Lívia fez. Depois de um ano desempregada, está trabalhando como educadora social, que não é exatamente sua área, mas estão ligadas, e iniciou a pós-graduação em Direitos Humanos. “O ensino superior não me colocou onde eu queria estar nessa fase da vida, mas não posso dizer que não foi bom para mim. Mal ou bem foi lá que criei minha consciência política e a minha identidade”, afirma.
Ócio improdutivo
O desemprego, que cresce em todas as faixas etárias, afeta especialmente os mais jovens. Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população de 14 a 24 anos desempregada aumentou para 5,6 milhões no primeiro trimestre deste ano, 600 mil pessoas a mais em relação ao fim do ano passado, crescimento de 11,9%. Entre as pessoas de 25 a 39 anos, a alta foi de 10,4% no primeiro trimestre frente aos últimos quatro meses do ano passado.
E nem mesmo áreas tradicionalmente mais estáveis foge da precarização. A médica Catarina Bueno também não teria feito a graduação na Universidade de Mogi das Cruzes não fosse pelo Prouni, a bolsa permanência de 400 mensais e o amparo de uma colega de classe, que a acolheu em sua casa. “Tenho vários irmãos e minha família fez o que pôde para que eu realizasse esse sonho. Eles passaram muitas dificuldades e eu pensei em desistir algumas vezes, mas sempre acontecia algo bom que me fazia acreditar que dava para ir até o fim”, conta.
Formada em 2016, ela está na batalha para conseguir ajudar a irmã que também quer cursar medicina. “Não sei se ela vai ter a mesma chance que eu, pois os investimentos de ingresso na universidade caíram muito. Na medicina a formação é longa e meus contratos são datados, de pouca duração. Eu ainda não consegui ajudar a minha família como gostaria.”
A formação, no entanto, ainda abre possibilidades no mercado de trabalho. A pergunta é: que trabalhos os jovens escolarizados então encontrando? “Em um momento de crise econômica, como a que atravessamos, qualquer um. E é aí que as frustrações emergem”, aponta a socióloga da Universidade Federal de São Carlos Maria Clara Carrochano, especialista em juventude.
Jeane de Jesus, 32 anos, foi adotada por uma família já com muitos filhos. Ela conta que seu destino parecia claramente marcado para ser alguém que não poderia dar certo, o que a fez brigar muita para sair do interior da Bahia e ir para Salvador estudar turismo.
Ela tentou entrar em uma universidade pública, mas a carga horária do curso não a permitiria trabalhar ao mesmo tempo. Ela então optou pelo Prouni na particular Universidade de Salvador. Foram muitas as agruras enfrentadas até o final do curso, em 2012: da privação do sono até uma depressão por estar longe da família em um momento difícil.
“Nos últimos anos da faculdade consegui trabalhar em um hotel na gestão de projetos, um período em que fiquei muito satisfeita. Mas no fim do curso meu contrato acabou e vim para São Paulo (para onde a família havia se mudado) ficar perto da família. Desde então não consegui mais trabalho na minha área. Procuro emprego o tempo todo e rezo muito para que aconteça em breve”, conta Jeane, que atualmente trabalha fazendo faxinas.
Embora tenha contado com o Prouni, a turismóloga não teve apoio de políticas de permanência na universidade. Ela conciliou os estudos com o trabalho de babá durante todo o curso.
Para a socióloga Maria Clara, os investimentos em políticas de acesso e permanência nas universidades são fundamentais para que os jovens não caiam no subemprego. “Elas permitem que eles estudem sem ter de ir trabalhar em um telemarketing e possam depois escolher melhor seus empregos. Os jovens não querem qualquer ocupação, eles querem um trabalho digno, com horários razoáveis, que caiba na vida deles.”
Outra tensão apontada pela socióloga é a dinâmica das filas por uma vaga quando ela é formada por trabalhadores cada vez mais escolarizados. “Como a fila é muito grande, as empresas, até para cortar custos, passam a exigir certo grau de estudo que nada tem a ver com aquela função, mas que vai ser utilizado como critério de seleção. Isso gera uma desilusão enorme para quem pelejou tanto para estudar.”
Esse sintoma é conhecido como inflação das credenciais: quanto mais diplomas, menos eles valem. Isso não significa, no entanto, que a formação não seja importante para a carreira, mas está ligada ao fato de que a sociedade está em transformação e o mercado de trabalho exigindo outras habilidades que vão além do acúmulo de conhecimento em uma determinada área.
“Na Europa esse não é um fenômeno novo. Lá se vê doutores enchendo bombas de gasolina. Não tem trabalho formal e assalariado como conhecíamos até agora, então o que se fala é que a partir de agora as pessoas terão de inventar seu trabalho com projetos, produtos específicos, e isso é feito a partir de competências que a universidade não dá conta. O professor é um especialistas, ele não se sente um educador”, explica a também socióloga e especialista em juventude e educação Lívia de Tommasi.
A taxa de desemprego entre jovens na Espanha e na Itália gravita em 50%, enquanto a taxa média desempregados no total da população é de 20%.
O peso de devolver a ajuda recebida
O professor de sociologia da USP Felipe de Souza Parábola pesquisou em sua tese de doutorado os jovens das classes populares que acessam a Universidade de São Paulo por meio de cotas e programas específicos de democratização ao acesso. Ele observou que este capítulo na vida dos alunos representa a ascensão social de toda a família, o que gera uma penosa preocupação em superar expectativas.
“A grande maioria pensava em prestar concursos públicos, em busca da estabilidade para poder melhorar a vida de toda a família. Todos demonstram, de uma maneira ou de outra, o desejo de devolver essa formação para a sua comunidade e isso tem a ver com certo fardo de ter de dar uma resposta pelo esforço que é também coletivo, porque os pais trabalham mais e mais para manter aquele aluno dentro da universidade. Não é de graça. Tem transporte, tem xerox, tem o aluguel de casa, tem a roupa. Se eles não conseguem, porque as coisas não estão fácil, o sofrimento que desencadeia disso é enorme. Muitos já estavam medicalizados”, relembra Parábola.
Fonte: Carta Capital