não dá para saber se é falta de empatia ou apenas ignorância. Mas o ministro da Economia, Paulo Guedes, em entrevista à Alexa Salomão, da Folha de S.Paulo, mostrou desconexão com a realidade ou incapacidade de interpretar o Brasil.
Ao defender o regime de capitalização (no qual cada um faz uma poupança para a sua própria aposentadoria), em detrimento ao de repartição (em que os trabalhadores da ativa contribuem para as pensões dos aposentados), Guedes lamentou que o Congresso Nacional tenha vetado a previsão de mudança de um para outro. E foi além.
“Com ele, você colocaria o Brasil para crescer, aumentaria taxa de poupança, educaria financeiramente famílias mais pobres. Um menino, desde cedo, sabe que ele é um ser de responsabilidade quando tem de poupar. Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo“, afirmou. Os negritos são meus, para compensar o desejo de gritar “pelamordedeus!”
A jornalista ainda tentou trazer o ministro à realidade ao, elegantemente, perguntar se alguém pobre consegue guardar dinheiro. Guedes respondeu que sim, através do depósito do FGTS. “Já guarda e não sabe.” A entrevistadora tentou lembrar, então, que a maioria dos pobres não tem emprego formal para contar com FGTS. No que ele respondeu, “mas eles terão com mudanças que teremos pela frente”. Repare que a consequência é que motiva a causa, uma construção impossível, tal qual uma gravura de Escher.
A capitalização empobreceu idosos no Chile, o que tem levado a sucessivas ondas de protestos no país sul-americano. Não vou, contudo, entrar nessa seara. Há algo anterior. Pois o tal menino sabe que é um “ser de responsabilidade” quando é empurrado para fora dos estudos a fim de ajudar a garantir o sustento da família, no campo e na cidade, devido à incompetência do Estado. Quando é ele que se esfola para permitir que os irmãos continuem comendo. Não precisa de alguém dizendo isso a ele.
Confrontado com essa declaração de Paulo Guedes, um vendedor ambulante, que trabalhava neste domingo na região central de São Paulo, mas que mora no Capão Redondo, na periferia pobre, primeiro perguntou se aquilo era brincadeira. Depois, soltou um palavrão. Daí, questionou “como juntar algo se a gente trabalha hoje para comer hoje mesmo?” Já uma trabalhadora empregada doméstica do Itaim Paulista pediu para dizer ao ministro que visitasse a casa dela. “Consumir tudo? A gente não tem nem serviço para poder ter dinheiro para comprar tudo o que precisa para fechar o mês!”
O ministro deveria repetir esse exercício, é bem simples. Meia hora abordando pessoas na rua é o bastante para encontrar declarações como essas e variações. Basta ouvir menos as avenidas Paulista, Faria Lima e Berrini, centro financeiros de São Paulo, e mais o Grajaú, São Miguel Paulista e Brasilândia ou qualquer outro lugar do Brasil onde os trabalhadores não vivem de dividendos isentos de imposto.
Tempos atrás, postei aqui um diálogo que presenciei em um boteco em São Paulo. A TV ligada trazia um consultor de economia dando dicas para resolver o atoleiro das dívidas. Enquanto isso, um senhor de pele curtida pela idade, trajando boné de um antigo candidato que, hoje, faz campanha em outro plano espiritual, assumiu o papel de comentarista do comentarista.
“Verifique a possibilidade de novas linhas de crédito.” (Se o gerente aceitar me dar mais um empréstimo, é um idiota.) “Depois verifique a possibilidade de vender bens.” (Geladeira é velha, o fogão é velho, o sofá é velho. Se vender a TV, não posso assistir o que você tá falando.) “Não conseguindo, cheque com os parentes.” (O meu cunhado nem visita mais a gente por conta do dinheiro que peguei dele e não paguei. Com que cara vou pedir outro? Se ele aceitar, é um idiota como o gerente.) “Empréstimo tendo o 13º como garantia é uma saída.” (Primeiro, um emprego que tenha 13º seria bom.)
Um outro homem, de bigode desbotado, se virou para ele e reclamou do mau humor do colega, que prontamente retruca: “Eu sei que o homem tá com boa vontade, mas essas dicas não servem pra nós, não. Aqui o problema não é que a gente gasta demais. É que ganha de menos. Aí, não tem jeito”. E depois de um longo gole de média e de afastar o gato malhado que procurava algo que despencasse do balcão, desabafou: “Quero é alguém que explique se dívida passa de pai pra filho quando o pai morre. Se não passar, já tá bom demais”.
Troque o “gasta demais” por “não sabe poupar”. Dá no mesmo. O fato das pessoas deixarem de poupar, em grande parte das vezes, não é irresponsabilidade com o planejamento do futuro, mas incapacidade de sustentar o presente, o que dirá gerar excedente. A isso, damos o nome de pobreza.
Isso sem dizer o óbvio: com o país derrapando para sair de uma crise econômica sem precedentes, o ministro deveria estar agradecendo que o povo consome. Ao comprar alimentos, roupas e calçados e pagar ônibus e trens, os pobres estão fazendo girar a economia. Ou ele acha que as coisas vão se resolver investindo na bolsa sem ninguém para comprar?
Pelo menos, descobrimos de quem é a culpa pelo país estar do jeito que está. O tal menino, irresponsável. Talvez deixá-lo de castigo resolva – após ele chegar em casa do trabalho, claro.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.
Fonte: DMT em debate