O economista James Joseph Heckman já esteve no Brasil. Parte de sua homepage tem versão em português. Mas seus livros não foram traduzidos. Ele e seus parceiros de pesquisa têm uma espécie de tema obsessivo: política de educação e escola são apenas parte de uma política de formação das pessoas.
Estudos nessa área deram a Heckman um Prêmio Nobel (2000). Eles indicam que grande parte das predisposições essenciais para o “sucesso” depende de fatores bem mais amplos do que a politica educacional, estrito senso, e bem anteriores à “idade escolar” (também em sentido estrito).
Para alicerçar tais afirmações, eles se valem de um grande acervo de conhecimentos produzidos nos últimos anos pelas ciências sociais e por novos campos da neurociência. Os estudos mostram quanto os resultados da escola dependem da qualidade dos estudantes que recebem – isto é, dependem da qualidade de vida das famílias. Assim, uma política de formação precisaria dar conta do papel da família, na geração de habilidades e motivações: “Famílias disfuncionais produzem crianças prejudicadas. Uma política bem sucedida de formação de habilidades envolve uma política para a família”.
O drama de sociedades muito desiguais, sublinham, é que aqueles que começam com deficits precoces acumulam mais deficits em seguida. Ações de correção custam caro, quanto mais passa o tempo, até se tornarem quase inviáveis.
Todos esses fatores afetam, dizem eles, a avaliação que usualmente se faz da aprendizagem ou das competências. E dos lugares sociais e momentos em que se constituem.
Em outro artigo, de 2007, eles expõem os grandes traços de uma política de skills mais ampla do que a educacional (ou escolar, para sermos mais precisos). É uma provocação intelectual aguda. Primeiro, porque contextualiza as políticas usualmente defendidas pelos participantes do debate, relativizando seus resultados. Segundo, porque mergulha fundo nas pré-condições sem as quais essas políticas correm o risco de serem empreendimentos caros e ineficientes.
Destaca-se a ideia de um “estrago” inicial das crianças pobres – algo que começa desde o ventre da mãe e se consolida nos primeiros anos de vida, antes, portanto, do confinamento escolar. Uma ideia elementar e intuitiva, mas agora referendada pela observação metódica e cientificamente treinada.
A formula é simples – se as encaramos como ‘produtoras” de agentes intelectuais, as escolas não podem fazer milagres, não podem transformar em ouro a matéria danificada que recebem das famílias. Ou, na melhor das hipóteses, a recuperação desses danos custará muito tempo e muito dinheiro. Desnecessariamente.
A ideia – intuitiva, repita-se – é que um acidente – o “onde se nasce” – desempenha papel determinante no “sucesso” das crianças. Adotar políticas para corrigir as desvantagens do nascimento não é, dizem eles, apenas uma questão de justiça social. E apontam as outras razões para defendê-las. Lembram que as crianças desassistidas e, portanto, inferiorizadas são mais propensas ao crime, à gravidez indesejada, à deserção escolar. Reverter tais efeitos teria altos retornos econômicos.
Mas revertê-las tardiamente custa caro e é mais difícil, argumentam. E assim como as vantagens se acumulam, isso também ocorre com as desvantagens e os custos sociais. “As escolas trabalham com o que os pais dão a elas”. Insistem nessas proposições.
Quais as políticas adequadas para “salvar” tais crianças? Colocá-las também “a salvo de suas famílias”, dos ambientes perversos em que se prejudicam? Um alerta para não serem apressadamente interpretados: “Políticas que removem as crianças de seus lares têm tido consequências catastróficas”. Por isso, iniciativas de outra natureza têm sido tentadas – centros pré-escolares, programas de visita às casas, por exemplo. “A família é um determinante maior na participação das crianças no crime e no comportamento socialmente divergente. Uma política de suplementação à família é, assim, uma política anticrime bem-sucedida”. O que, além de tudo, reduz custos com prevenção e encarceramento. E a sociedade norte-americana, campeã mundial em encarceramentos, deveria levar isso em conta. Literalmente, levar em conta. Afinal, dizem os autores, o crime custava, para a sociedade americana, algo perto de US$ 1,3 trilhões em 2004. Quase cinco mil dólares por habitante. Esse é o custo, mas a tragédia social é ainda pior, lembram. Em 2011 havia quase 6 milhões de pessoas que tinham passado algum tempo em prisões. Um terço deles ainda estava sob condicional, vigilância e controle. Era uma escalada: 1,3% dos adultos em 1974, 1,8% em 1991 e 2,7% em 2001.
“Em termos puramente econômicos, a defesa da intervenção precoce na infância é forte”. Mas há outros motivos, também econômicos, além daqueles ligados aos custos do crime e da contravenção. A sociedade americana investe em treinamento para o trabalho e investe pouco em educação inicial e em crianças em situação de desvantagem. Enfatizando a relevância de habilidades cognitivas e não-cognitivas na vida social (e naquilo que se chama de sucesso), os autores lembram que tais habilidades – e talvez mais ainda as não cognitivas, como o autocontrole e a persistência – dependem do que se pode chamar de condições ambientais ou modo de vida. Condições como, por exemplo, a ausência de um dos pais, baixa renda, educação falha dos pais ou responsáveis, falta de estímulos emocionais e assim por diante.
Por isso, dizem, o melhor meio de melhorar as escolas é melhorar o ambiente das crianças desde muito cedo, antes mesmo da escola, propriamente dita. Para evitar que o “acidente do nascimento” determine as chances de sobrevida. Simples, intuitivo, mas nem por isso menos relevante, até mesmo pelas resistências que a ideia encontra: “As famílias contam. Contudo, a maior parte dos americanos são justificadamente relutantes quanto a intervenções nos primeiros anos e preferem respeitar a santidade da família”.
Um aviso é importante, para evitar mal-entendido. Os autores NÃO pretendem diminuir o papel da escola e das políticas educacionais, estrito senso. Eles pretendem sublinhar o que é necessário para que elas desempenhem bem esse importante papel:
“É importante sublinhar o que NÃO estamos dizendo. Nós não afirmamos que todas as habilidades e motivações são formadas nos primeiros anos, nem que as escolas e as empresas não têm papel importante para produzir pessoas eficazes. Também não afirmamos de modo algum que os primeiros anos constituem o único determinante do sucesso posterior, ou que as pessoas criadas em famílias desfavorecidas devem ser absolvidas de qualquer culpa quando cometam crimes. Nós simplesmente argumentamos que ambientes iniciais desempenham um grande papel na moldagem dos resultados posteriores e que sua importância é negligenciada na política atual.”
Alguns estudos de Heckman e seus parceiros:
Heckman, James – Giving kids a fair chance, MIT Press, Boston, 2013
Heckman, James e Dimitriy V. Masterov . The Productivity Argument for Investing in Young Children, 2007, NBER Working Paper No. 13016. Disponível em: http://www.nber.org/papers/w13016.
Cunha, Flavio Cunha e James J. Heckman – Investing in Our Young People, NBER Working Paper No. 16201, July 2010. Disponivel em: http://www.nber.org/papers/w16201;
Heckman, James J. – Lessons from the Technology of Skill Formation, NBER Working Paper No. 11142, February 2005. Disponível em: http://www.nber.org/papers/w11142;
Elango, Sneha, Jorge Luis García, James J. Heckman & Andrés Hojman – Early Childhood Education, NBER Working Paper No. 21766, November 2015, December 2015, Disponivel em http://www.nber.org/papers/w21766;
Heckman, James J. & Chase O. Corbin – Capabilities and Skills, NBER Working Paper No. 22339, June 2016. Disponivel em http://www.nber.org/papers/w22339;
Heckman, James J., John Eric Humphries & Gregory Veramendi – The Non-Market Benefits of Education and Ability, NBER Working Paper No. 23896, October 2017. Disponivel em:http://www.nber.org/papers/w23896;
Cunha, Flavio, James J. Heckman, Lance Lochner, & Dimitriy V. Masterov – Interperting the Evidence on Life Cycle Skill Formation, NBER Working Paper No. 11331, May 2005. Disponível em: http://www.nber.org/papers/w11331
Fonte: Jornal da Unicamp