As comunidades não têm escolas. As escolas que tinham, foram demolidas. Quando há aulas, as crianças ficam embaixo de um pé de manga ou debaixo do sol. Mas isso não acontece com frequência, porque desde o começo desse ano elas tiveram menos de 30 dias de aula.
Recentemente descobriu-se em Altamira (PA) que existem várias comunidades de ribeirinhos isolados. São cerca de treze comunidades e quase 300 famílias que vivem ao longo do Rio Iriri, um dos principais afluentes do Rio Xingu, onde foi construída a barragem de Belo Monte. Essas comunidades vivem longe o suficiente para que não tenha sido necessário que elas fossem realocadas de suas casas, mas vivem perto o suficiente para que todas sentissem os impactos do barramento. Antes a pesca era farta, a água era boa, e a vida não era fácil, mas era tranquila. “A gente não dependia de ninguém. A gente via os peixes no fundo do rio. A gente ia para cidade só para vender o pescado e já voltava. Depois que o reservatório encheu, tudo mudou. A pesca ficou escassa, e a água ficou podre. Sumiu tanto o peixe grande quanto a isca. Só tem lama agora. A nossa vida se tornou miséria e fome”, relata Maria de Fátima, uma das lideranças das comunidades ribeirinhas.
As comunidades não têm escolas. As escolas que tinham, foram demolidas. Quando há aulas, as crianças ficam embaixo de um pé de manga ou debaixo do sol. Mas isso não acontece com frequência, porque desde o começo desse ano elas tiveram menos de 30 dias de aula. Quando chove, não tem aula. Quando faz sol, as crianças são levadas para a escola em um carro de boi conhecido como caminhão pau-de-arara. Mas como às vezes batem o rosto ou o cabeça nas laterais do caminhão devido aos buracos, os pais ficam receosos de mandar as crianças para aula.
Doença e Morte
Quando chega o inverno, período da cheia no rio, começa a fome. “O povo começou a viver em decadência. Muita gente foi ficando doente. Eu ia para cidade, pedia ajuda para os órgãos públicos, para a Secretaria da Saúde, e ninguém me atendia. Eu pedia ajuda para a Norte Energia, mas não dava em nada” explica Maria de Fátima. Há menos de dois anos, uma empresa contratada pela Norte Energia havia passado pela comunidade entregando panfletos convidando algumas famílias para participarem de uma reunião. Já nessa ocasião, algumas famílias foram excluídas pois não receberam sequer o convite. A empresa passou por poucas casas, fizeram perguntas para algumas pessoas e para outras não. “Esse ano, eu decidi conversar com essa empresa e pedir ajuda. Eles disseram que a comunidade tinha que esperar para que os projetos fossem iniciados”, lembra a liderança ribeirinha. Mas às vezes, não dá para esperar.
Antes de Belo Monte a situação de saúde não era tão ruim, simplesmente porque as pessoas não ficavam doentes com tanta frequência. Posto de Saúde também não tem. Os moradores das comunidades estão há anos sem tomar vacina ou sem mesmo receber a visita de um agente comunitário de saúde. Depois que a barragem chegou, a água ficou podre. Hoje muitas pessoas estão com doenças de pele, e sofrem com vômito e diarreia. Os adultos conseguem ir levando as crianças e idosos sofrem mais. Quando alguém fica doente, há duas opções: pagar para ser transportado de barco a motor por cerca de cinco ou seis horas até chegar a Altamira, ou morrer. Essa foi a opção que restou à senhora Maria das Rosas. Faleceu depois de muitos dias sofrendo com vômito e dor de barriga, e sem dinheiro para pagar a passagem de barco. Não deu para esperar.
Desespero a Remo
O desespero que já era latente, transbordou com a morte da amiga comunitária. Num ato de revolta e agonia, as pessoas começaram a cercar os barcos que passavam pelo rio. Pediam gasolina, pediam comida, pediam ajuda. Juntaram o pouco combustível que conseguiram, com muito da dor que crescia, e foram para Altamira. Foram praticamente a remo, pois a gasolina era apenas para os trechos onde havia muita correnteza. Juntaram crianças e idosos, homens e mulheres. Foram todos. Foram com fome. Foram aflitos e desesperados. Saíram de madrugada, e passaram o dia todo remando. Não tinha comida, e conforme foram chegando perto de Altamira a qualidade da água piorava, então também não tinha água para beber. Chegaram de noite, ficaram acampados por algumas horas, e logo nas primeiras horas da madrugada já foram para as ruas.
Ocuparam a empresa às quatro horas da manhã. A mesma empresa contratada pela Norte Energia que há dois anos entregou os convites. Chegaram os convidados, famintos e desesperados. Tiveram que chegar cedo, pois se fossem durante o dia a polícia os teria barrado. Altamira amanheceu com o susto. Quem? Mas de onde? Mas como assim? Ribeirinhos? Pois é. Depois de tantos anos do começo da construção de Belo Monte, depois de tantos protestos e passeatas, depois de tanta atenção da mídia aos atingidos, ainda existia um grupo de mais de mil pessoas que estavam invisíveis e isoladas vivendo à margem do rio e das manchetes.
“A Norte Energia e a prefeitura sabiam que a gente existia, mas os outros não. Eu nunca tinha ouvido falar sobre o Movimento Xingu Vivo, e o Ministério Público também não sabia da gente. Eu só tinha pedido ajuda para a Norte Energia. Depois é que eu aprendi quem poderia nos ajudar. A gente estava sozinho. A gente veio no desespero. Ninguém sabia o que fazer”, reclama Maria de Fátima.
A Esperança Espera
A ajuda chegou. As lideranças do Movimento Xingu Vivo começaram a se organizar, trazendo água e comida para os manifestantes. Não tinha marmita para todo mundo, então só mulheres e crianças almoçaram. Naquela noite, dormiram no campus da Universidade Federal do Pará. Uma mãe entrou no banheiro para dar banho em seu filho, e ele começou a chorar assustado com o chuveiro. Como podia a água sair de um cano na parede? Foi preciso colocar água num balde e banhá-lo com canequinha para que ele se acalmasse.
Depois do tumulto, a calmaria veio para todos. As lideranças do protesto foram recebidas em uma reunião entre IBAMA, Norte Energia, Prefeitura e Ministério Público Federal. Explicaram a situação e pediram ajuda. Elas reivindicam ser reconhecidas como impactadas pelo empreendimento da usina, e esperam assim começar a receber alguma assistência. “A gente vive bem perto das áreas indígenas. Mais perto da barragem do que eles. Como pode eles receberem tanta ajuda, e a gente não receber nada? É a gente que mora aqui, na boca do lobo, dentro do câncer, e a gente não ganha nada. Só quem existe são os índios”, denuncia Maria de Fátima. Depois dessa primeira, já foram várias outras reuniões. “Em algumas, eles dizem que a gente não é ribeirinho, que só quer tirar vantagem. A gente não existe para esse povo que apoia Belo Monte”, conclui.
O Ministério Público Federal reconheceu as comunidades e se comprometeu a defendê-las. Agora, resta apenas esperar que a Norte Energia reconheça os impactos e comece a atendê-las. Agora, reforça-se a esperança que esses territórios sejam protegidos afim de que essas populações possam continuar vivendo. Esperamos que dessa vez dê tempo.
*Veronika Miranda Chase é PhD candidate da University of Massachusetts Boston
Fonte: Diplomatique