O suicídio, pela sua própria natureza da surpresa e imprevisibilidade, acaba punindo emocionalmente a todo entorno que envolve os que se vitimam

O suicídio é o assunto do momento, um fenômeno suficientemente trágico e complexo para ser, ainda que com alguma procedência, relacionado apenas e tão somente ao deprimente quadro da conjuntura nacional.

A impressão, nada equivocada, é a de que é um fenômeno que vem em surtos. De repente, é como se os casos se multiplicassem, mas o provável é que, independentemente das estatísticas, certos dramas tenham o condão de despertar mais as atenções e as consciências. Em especial quando, num assombro de incoerência, as vítimas são jovens na flor da idade.

No espaço de menos de duas semanas, dois adolescentes do Colégio Bandeirantes, em São Paulo, se mataram. Há notícias de que outro secundarista do mesmo Bandeirantes havia, um ano atrás, intentado contra a própria vida – nas dependências da escola. Sobreviveu.

O Bandeirantes é um colégio de elite, frequentado pela classe média abonada e sempre muito bem situado nos rankings do desempenho acadêmico. Os episódios seguidos não pareciam fazer sentido.

A escola respondeu com transparência e responsabilidade, recrutando o know-how de psicólogos e educadores, a fim de lidar com a comoção dos alunos e professores. Os espaços de conversa e reflexão foram estendidos aos pais.

Temas tabus como a depressão, seus sintomas e suas eventuais consequências vieram à tona – ainda que em pelo menos um dos dois casos esteja supostamente uma súbita desilusão amorosa.

O Bandeirantes aceitou até mesmo o desafio de investigar a tentação alheia de atribuir ao colégio um rigor pedagógico excessivo, que de fato o currículo cobra, mas que está longe de preencher todo o espectro de situações apresentadas pela tragédia.

A última estatística do Ministério da Saúde digna de crédito, de 2015, apurou 722 mortes entre adolescentes de 15 a 19 anos – sendo o suicídio a segunda maior causa de morte entre os jovens.

De todo modo, o Ministério da Saúde passou a tratar o suicídio adolescente como uma epidemia, um sinistro problema de saúde pública, digno de atenção e prevenção. Embora enevoadas pelo preconceito e por evasivas, as estatísticas denunciam que nos últimos quatro anos o número de casos no Brasil aumentou 12%.

O suicídio, pela sua própria natureza da surpresa e imprevisibilidade, acaba punindo emocionalmente a todo entorno que envolve os que se vitimam. Sempre ficará para a família, os amigos ou os colegas – como se percebe agora no Bandeirantes – o amargo sabor da culpa mesclado à impotência.

A ilusão de que, um gesto afetuoso, uma palavra prévia e uma maior precaução poderiam ter redimido o potencial suicida de sua fatal intenção. Nem sempre, porém, o grau de angústia é perceptível mesmo aos mais chegados.

Os frequentes episódios de colegiais norte-americanos que saem atirando em seus colegas e professores para depois se matarem apresentam protagonistas até então descritos como meramente tímidos, quando não “uns amores de pessoas”.

O fantasma do bullying costuma aparecer em episódios como esses, em que a vingança intimamente fermentada desencadeia uma violência contra os outros, antes de se voltar para si mesmo.

Em outubro passado, um garoto de 14 anos tentou reproduzir conscientemente, no Colégio Goyases, em Goiânia, o massacre de Columbine, nos Estados Unidos, quando dois alunos mataram 12 colegas e um professor e feriram outros 15 antes de se matarem.

O assassino de Goiânia, que usou uma pistola da mãe PM, citou também a chacina de Realengo, no Rio, onde um ex-aluno perturbado invadiu uma escola pública e fuzilou 12 colegas entre 13 e 16 anos que nada tinham a ver com suas alucinações. O assassino de Realengo se matou. O de Goiânia, não.

Chorão, à frente, Champignon, à direita dele, e a maldição do pop rock: uma morte puxa a outra

Dificuldade maior para os educadores e os psicoterapeutas está em outra modalidade de suicídio, aquele provocado por um impulso momentâneo.

O adolescente costuma ter o surpreendente pendor de, em sua insegurança visceral, converter uma dificuldade aparentemente miúda num oceano de problemas. Acuado, atormentado, pode buscar a mais irremediável das saídas. É a típica situação em que, se a vítima pudesse se arrepender a posteriori, certamente se arrependeria.

O suicídio é contagioso – essa sua característica tóxica assusta igualmente aqueles que estão vizinhos a ele. O drama de Champignon, guitarrista da bande Charlie Brown Júnior, é emblemático. Ele se matou aos 35 anos apenas seis meses depois da morte, por overdose de cocaína, do vocalista e band leader Chorão.

Em maio, outro músico ligado à banda, Peu Sousa, se enforcara com um cinto. Champignon lamentou, na época: “Só mesmo quem perdeu a fé na vida faz uma coisa dessas”.

Na noite de 8 de setembro de 2013, Champignon levantou-se intempestivamente da mesa de jantar, foi ao quarto e deu um tiro na cabeça. Sua mulher, Claudia, estava grávida. Ela não percebera uma única sombra que pudesse obscurecer a felicidade do casal.

O pop rock tem, aliás, uma vocação epidêmica para o suicídio, premeditado ou acidental: Sid Vicious e Kurt Cobain encabeçam uma longa lista.

Até o século XIX, a morte autoinfligida estava catalogada entre as anomalias produzidas nos abismos da psique humana. Típico de poetas românticos descabelados. De repente, o francês Émile Durkheim, um dos fundadores de uma disciplina chamada Sociologia, conseguiu estabelecer, numa obra pioneira, de 1897, as possíveis conexões do suicídio com as peculiaridades da vida social: educação, etnia, emprego etc.

A sanção de loucura individual, quase sempre de fundo religioso, perdia espaço para a interpretação de malaise coletiva. Outro francês, Albert Camus, iria além. A frase inaugural de O Mito de Sísifo reza: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental de filosofia”.

No quesito contágio, a Golden Gate Bridge, que sobrevoa o canal que leva da Baía de São Francisco ao Pacífico, é imbatível. É uma ponte linda de morrer. Mas tem gente que toma isso ao pé da letra. Muita gente.

Tanto que em seus 2,7 quilômetros de elegância arquitetônica, inaugurada em 1937, há uma dezena daqueles telefones de emergência do tipo CVC para quem, movido pela atração letal daquela esfuziante paisagem, se sinta atraído pelo ideal de se matar em grande estilo. Só perde, em atração fatal, para a ponte sobre o Rio Yang-tsé, em Nanjing.

Os suicídios na Golden Gate costumam vir em ondas. Tanto que, em 2013, quando o recorde de mortes num ano estava para ser batido, a imprensa decidiu parar de divulgar as estatísticas. O vão livre de 67 metros nem sempre se traduz num voo fatal.

Há os que miraculosamente se salvam e ficam para contar a história. Na crônica das tragédias, a primeira tentativa anotada ocorreu um par de dias após a inauguração. O indigitado lançou-se e caiu sobre uma barcaça que por ali passava. Quebrou as duas pernas.

Em 1977, quando o número de suicidas na Golden Gate chegou a 40, a cidade de São Francisco envolveu-se num apaixonado debate sobre se devia ou não envolver a estrutura metálica com uma tela que dissuadisse os candidatos à morte espetacular.

Boa parte da liberal São Francisco alegava que, afinal, matar-se é um direito como qualquer outro. Outro grupo – que foi derrotado – defendia severas medidas antissuicidas. Nesse grupo pró-vida pontificou um cavalheiro de nome Jim Jones. Paradoxalmente, esse mesmo Sr. Jones induziu mais de 900 acólitos de sua seita, Templo dos Povos, a cometer, em Jonestown, na Guiana, o maior suicídio coletivo da história desde a batalha das Termópilas (480 a.C.).

Entrevista: Como sobreviver à dor?

No Brasil, felizmente, a resposta sangrenta ao bullying é bem menos frequente do que nos Estados Unidos, embora o problema seja igualmente preocupante. Aos 18 anos de idade, Ana Beatriz Brandão conseguiu transformar os abusos que sofreu dos colegas numa lição de vida e em copiosa literatura.

Tem mais de 20 livros publicados, o último deles, A Garota das Sapatilhas Brancas, com foco no tema e com direito a figurar no rol dos best sellers. Ana Beatriz ficciona com base numa realidade que leva adolescentes vulneráveis ao gesto extremo. A escrita é que a salvou de ter o mesmo destino.

CartaCapital: Bullying é, em que proporção, fator de suicídio de adolescentes?

Ana Beatriz Brandão: Pode ser um fator, sim. O bullying machuca emocionalmente a vítima. Dá uma sensação de que estamos sozinhos, de que ninguém gosta da gente, de que o mundo seria melhor se nós não existíssemos. E sem ajuda é muito difícil de suportar. Uma coisa que meus pais sempre me diziam era que um dia tudo aquilo iria passar. E com a ajuda de todos que me amavam, passou. Procuro retratar os dois lados da moeda, quem sofre bullying e quem pratica, e mostrar que todos nessa equação saem perdendo.

CC: Você, sob tensão extrema, chegou a pensar em tirar a vida?

ABB: Acho que todo mundo, em algum momento de extremo sofrimento e estresse, tenha pensado nisso um dia. Mas o mais importante é o que fazer com esse pensamento. Por isso eu reforço a importância de não aguentar tudo sozinho. Sempre que pensava que estava sozinha, que sentia que não aguentaria mais, eu tinha no apoio das pessoas que me amavam o suporte para enfrentar os problemas. E os livros, naquela época, me ajudaram muito também. Livros são a chance de nos desconectarmos por alguns momentos do que estamos passando. Além de mostrar que todos têm problemas e que podem superá-los.

Fonte: Carta Capital