Grupos de ex-policiais, militares e agentes na ativa não foram confrontados, garantindo expansão dessa força paralela. Dois milhões de pessoas vivem em áreas sob seu controle

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Soldados do Exército patrulham a Vila Kennedy, no Rio. MAURO PIMENTEL AFP

Uma eminência parda controla territórios no Rio de Janeiro onde vivem mais de 2 milhões de pessoas. São as milícias, grupos formados por ex-policiais, bombeiros, militares, agentes penitenciários e também membros das forças de segurança ainda na ativa. A atuação destas organizações paramilitares voltou à tona após o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista Anderson Gomes no dia 14 de março. Embora a polícia ainda não tenha identificado nenhum dos assassinos, o nível de profissionalismo da emboscada e as reiteradas críticas feitas pela parlamentar à atuação da polícia e à intervenção federal jogam a suspeita sobre grupos milicianos. Especialistas ouvidos pelo EL PAÍS afirmam que nas últimas décadas muito pouco foi feito para controlar estes grupos, que colocam em risco a democracia nos territórios em seu poder e já elegeram vereadores e deputados estaduais.

Estima-se que atualmente cerca de 160 comunidades no Estado do Rio estejam sob o controle de grupos paramilitares. O maior deles é o chamado de Liga da Justiça, criado no final da década de 1990 por Aldemar Almeida dos Santos e Ricardo Teixeira Cruz, conhecidos pelos apelidos de Batman e Robin. Os dois estão presos.

Até o momento, a intervenção federal não incomodou os milicianos. O grosso das operações do Exército no Rio teve como foco principal áreas dominadas pelo tráfico, principalmente pelo Comando Vermelho. Prova disso é que a comunidade escolhida como balão de ensaio pelas autoridades, a Vila Kennedy, na zona oeste, era palco de disputa entre o CV e o Terceiro Comando Puro. Para o sociólogo Ignácio Cano, da Universidade Federal Fluminense, o enfrentamento feito pelo Estado contra os grupos paramilitares foi insuficiente. “As milícias são um câncer no Rio. E embora tenham provocado resposta do Estado depois de 2008, foi insuficiente”, afirma o professor. “Quando o Estado age contra o tráfico ele lança mão de uma lógica militarizada de ocupação da comunidade. Mas com relação às milícias não ocorre isso: eles investigam, podem até prender alguns, mas não tem a lógica de retomada do território”.

A falta de enfrentamento às milícias não está restrita à atual intervenção federal. A única comunidade em poder dos paramilitares que recebeu uma Unidade de Polícia Pacificadora foi o Batan, na zona oeste da cidade – uma dentre as 38 UPPs implementadas.

O combate à atividade das milícias exige estratégias diferentes das utilizadas contra o tráfico. “Para enfrentar as milícias é preciso um trabalho de inteligência para arregimentar provas e denunciar. É difícil o flagrante, uma vez que eles atuam de forma bem organizada”, diz Michel Misse, professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fundador do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana. “Infelizmente o trabalho de inteligência das polícias é um dos pontos fracos da atuação delas. Prova disso é que 90% dos presos no Brasil foram detidos em flagrante pelas Polícias Militares, ou seja, são prisões que não dependem de investigação alguma”, afirma. O combate às milícias também esbarra no corporativismo das forças de segurança, tendo em vista que muitas vezes o miliciano é colega de farda de quem deveria prendê-lo.

Gato-net e extorsão

Inicialmente os grupos milicianos surgiram no bairro de Rio das Pedras com a promessa de garantir a segurança dos moradores contra roubos e outros crimes relacionados ao tráfico de drogas. Seu boom ocorreu no início dos anos 2000, nos bairros da zona oeste do Rio e na Baixada Fluminense. Com o enfraquecimento das facções criminosas provocado pela implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, os milicianos estenderam seus tentáculos para a zona norte e até mesmo para municípios vizinhos, como Macaé e Angra dos Reis. Sua principal fonte de renda são a venda de proteção, de serviços clandestinos de TV por assinatura (o gato-net, que custa em torno de 40 reais), botijões de gás com sobrepreço e transporte alternativo. Existem relatos de grupos paramilitares mirando também investimentos no setor imobiliário – qualquer venda ou aluguel na comunidade é taxado por eles. Na prática, afirma a pesquisadora da Universidade Estadual do Rio Alba Zaluar, “onde existe uma possibilidade de lucro os milicianos agem”. “Eles acabam controlando as associações de moradores das comunidades, o que facilita o controle sobre os serviços no bairro”, diz a professora.

A relação entre traficantes de drogas e milicianos é inicialmente marcada por conflitos nas áreas em disputa. Depois, geralmente os grupos tendem a entrar em acordo – os traficantes reticentes são mortos ou expulsos. Um caso emblemático ocorreu em agosto de 2015. O Comando Vermelho e milicianos disputavam havia cerca de um ano o controle do Morro do Jordão, em Jacarepaguá. Para colocar um ponto final no conflito, o grupo paramilitar, com apoio da Liga da Justiça, teria negociado a venda do ponto para os traficantes por 3 milhões de reais, como informou o jornal O Dia. Também existem casos de traficantes que pagam uma porcentagem do comércio de drogas para milicianos em troca da autorização para operar bocas em território controlado por paramilitares.

Além da atuação nas comunidades, uma marca dos milicianos é a tentativa de infiltrar candidatos na política, tarefa na qual os traficantes nunca conseguiram muito êxito. Desde 2007 ao menos cinco vereadores da capital fluminense e deputados estaduais já foram presos por envolvimento com os paramilitares – dentre eles Cristiano Girão, eleito vereador pelo PMN e preso em 2009, a vereadora Carminha Jerominho (PT do B), filha de Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, vereador que também foi preso e condenado a 14 anos de prisão por seu envolvimento com a milícia do bairro Gardênia Azul.

Mas as milícias aprenderam com os erros. Se antes eram os líderes dos grupos que tomavam a frente no processo eleitoral, as prisões recentes ensinaram aos paramilitares que a melhor estratégia é ficar em segundo plano, indicando laranjas como candidatos e praticando o chamado curral eleitoral. O professor Misse aponta que “há uma afinidade ideológica entre os milicianos e alguns candidatos da extrema direita”, o que poderia fazer com que os paramilitares apoiem essas candidaturas. Os candidatos que não agradam aos milicianos podem acabar se tornando alvos: de 2015 até hoje ao menos 13 postulantes a uma vaga na Câmara municipal foram mortos, grande parte deles em áreas controladas pelos paramilitares.

Os grupos milicianos são famosos pela violência com que agem. O caso mais famoso foi o assassinato, em agosto de 2011, da juíza Patrícia Acioli. Ela foi vítima de uma emboscada quando chegava em sua casa, em Niterói. A magistrada foi alvejada com 21 tiros, e morreu no local. Ela era uma rigorosa combatente dos excessos cometidos por policiais e milicianos, tendo condenado dezenas de agentes estatais corruptos. Onze policiais ligados a grupos paramilitares foram condenados pelo assassinato de Acioli.

Fonte: EL PAIS