A esquerda deve apresentar uma agenda com pontos claros que a distinga da direita em um projeto de país, e construir a unidade

Paz entre nós, guerra aos senhores

As esquerdas deviam entender que o adversário é comum e representa menos de 1%

Muito se fala em unidade na esquerda para o processo eleitoral de 2018. Alguns setores defendem uma unidade a qualquer custo sem nenhum tipo de discussão, seja programática, seja na definição do arco de alianças. Aqueles que apontam que uma unidade neste momento não seria possível são imediatamente rotulados de traidores pelas hordas existentes nas redes sociais e acusados de fazer o jogo da direita. Esta discussão é um tanto quanto maniqueísta, interdita qualquer debate crítico à experiência dos governos progressistas do último período e não ajuda a construção de uma alternativa ao golpe em curso para além da resistência.

Alguns pontos precisam ser demarcados antes de avançar neste debate. Obviamente que qualquer avaliação de como atuar de forma unitária no próximo período depende de alguns consensos sobre o período que passou. O primeiro dissenso mais sério nas análises feitas pela esquerda se dá na interpretação do que foram as jornadas de junho de 2013. Chega a ser curioso que setores que criticam o oligopólio midiático interpretem aquelas manifestações a partir da narrativa construída por este oligopólio e não pelo que de fato ocorreu nas ruas. Essa interpretação simplifica o processo ocorrido como manifestações da direita que gestaram a ruptura democrática.

Ainda que discordemos desta simplificação, entendemos razoável demarcar ali o início da crise política que culminou no impeachment de Dilma Rousseff. Naquele momento, com país próximo ao pleno emprego, a agenda apresentada por quem ocupava as ruas apontava para um aprofundamento da democracia e apresentava pautas que apontavam claramente à esquerda – inicialmente passe livre, mas depois melhoria nos serviços públicos de saúde e educação. A narrativa midiática de combate à corrupção, autonomia do Ministério Público discutida em proposta de emenda constitucional à época, embora aparecessem nas chamadas da Rede Globo (como muito bem descrita por Jessé Souza em A Radiografia do Golpe), não existiam de fato nas ruas. Não foi exatamente o discurso da mídia que inflou aquelas manifestações como faria depois na Marcha do Pato Amarelo, mas as imagens da violência policial.

Ainda que inicialmente o governo tenha tentado responder às demandas apresentadas, a reação mais marcante foi a coordenação pelo governo federal por meio do Ministério da Justiça das ações de repressão. Opção muito bem recepcionada pelos governos estaduais, principalmente de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, mas não só.

Naquele momento também surgiram dois fenômenos que até então eram praticamente desconhecidos da realidade brasileira. Apareceram pela primeira vez em manifestações no país grupos anarquistas adeptos da tática do Black Bloc. Sem entrar no mérito da tática, a utilização de máscaras torna mais fácil a infiltração por agentes provocadores como demonstraram alguns vídeos. E assustadoramente também começou a surgir certa postura fascista de agressões a militantes de partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais.

Se por um lado as jornadas de junho foram romantizadas por alguns setores da esquerda menos ortodoxos, elas foram duramente criticadas pela esquerda mais tradicional, principalmente pelos fenômenos acima descritos. Junho de 2013 jamais foi adequadamente compreendido. Enquanto isso, no campo da direita, os mais extremistas iam às ruas disputar espaços, mas o establishment conservador, assustado com o que se passava, também percebia ali uma fratura no projeto desenvolvimentista capitaneado pelo PT.

As ruas então esfriaram, mas deixaram como legado a lei antiterrorismo proposta pelo governo federal temeroso pelo possível impacto das manifestações nos grandes eventos. A redação com que acabou aprovada seria perfeita para, em conjunto com a lei das organizações criminosas de agosto de 2013, a criminalização dos movimentos sociais e das lutas da classe trabalhadora.

O processo eleitoral de 2014 foi bastante radicalizado e a coalização liderada pelo PT sinalizou claramente que aprofundaria o projeto neodesenvolvimentista justamente na direção das grandes demandas apresentadas nas ruas em 2013. Entretanto, apesar da margem estreita com que vencera as eleições com apoio decisivo de setores da esquerda críticos ao governo, o governo faz a opção política de incorporar a agenda econômica da oposição de direita derrotada no segundo turno. A escolha não traz os apoiadores do adversário e corrói a base social de apoio ao governo.

Não ter a compreensão deste processo é não ter a capacidade mínima de autocrítica para entender as falhas do campo progressista que facilitaram o golpe. Uma lei básica na natureza que alguns setores da esquerda já deveriam ter compreendido é que predadores atacam suas presas em qualquer vacilo.

Entretanto, aqueles setores que foram críticos pela esquerda à experiência petista precisam também ter a clareza de que não foi um ataque ao PT, mas um golpe contra a imensa maioria da população. Um golpe cuja pedra angular é a Emenda Constitucional nº 95 que em conjunto com alguns mecanismos da lei de Responsabilidade Fiscal impedem qualquer autonomia de política fiscal do governo central. A doutrina da austeridade apresentada sob o nome pomposo da responsabilidade fiscal deve ser combatida, pois se manifesta como irresponsabilidade econômica e social ao impedir que haja recursos para políticas públicas como saúde, educação, seguridade social, assistência social, reforma agrária, entre outros.

Os efeitos da contrarreforma trabalhista, com a terceirização irrestrita e a jornada intermitente, surgiram tão logo iniciou sua vigência com demissões em massas em universidades privadas para novas contratações sob a nova lei e anúncios de vagas que mal cobrem os custos de subsistência do trabalhador.

contrarreforma da previdência continua na pauta e deve ser votada em fevereiro. A agenda das privatizações avança com a publicação de Medida Provisória visando à privatização da Eletrobras. Mesmo a venda da Petrobras, da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil deixaram de ser tabu.

É preciso resistir, mas também urge que se busque a reexistência e as fórmulas do passado não podem ser repetidas. Deste modo, a esquerda precisa apresentar uma agenda com pontos claros que a distinga da direita no projeto de país, mas, para isso, tampouco será suficiente uma agenda de conciliação. O golpe destruiu as ilusões dos que acreditavam nesta utopia. O povo precisa saber exatamente qual o programa que a esquerda apresenta ao país.

Neste contexto, entendemos que se coloca a necessidade da apresentação clara de um conjunto de reformas que mudem de vez o caráter do Estado Brasileiro. Ainda que não seja um programa revolucionário, o nosso programa mínimo deve ser radical o suficiente para que tenha cara de programa máximo para outros setores da sociedade.

Para além de insistir na desconstrução do mito da responsabilidade fiscal, deve se contrapor o discurso de que as contas públicas necessitam ser saneadas com as contradições deste mesmo modelo. Assim, é importante denunciar que os gastos com juros e encargos da dívida consomem um orçamento maior que os gastos com saúde e educação somados. No entanto, também parece fundamental pautar uma forte tributação sobre lucro, grandes fortunas, patrimônio e herança.

Deve estar na pauta de um programa unificado da esquerda a imediata revogação do teto dos gastos e das mudanças na legislação trabalhista. Queremos uma reforma trabalhista que reduza a jornada de trabalho sem reduzir salários ou qualquer garantia ao trabalhador prevista na velha CLT. A previdência pode ser reformada para acrescentar direitos, jamais retirá-los.

Deve falar abertamente na transição para sistemas exclusivamente públicos (sem provimento privado) de saúde e educação. A reforma agrária deve ser encarada de uma vez por todas. O direito à cidade e a reforma urbana precisam estar na agenda. O combate ao racismo, ao machismo e todas as formas de opressão não é secundário.

Entretanto, é preciso saber que estas pautas não avançam com as velhas alianças. Nenhuma candidatura pode ser interditada porque isso é a continuidade do golpe, mas uma unidade no campo da esquerda necessita algo para além de um nome.

Não pode residir, por exemplo, em parceria com aqueles que participaram e participam do golpe, em Alagoas, no Amapá, no Rio Grande do Sul, ou em qualquer canto deste país. Para uma unidade na esquerda é preciso não se aliar à direita. Aqueles que buscam esta unidade eventualmente precisam relevar algumas bobagens ditas por determinados setores, o inimigo não está à esquerda. Nosso adversário representa menos de 1%, nós somos os outros 99%. Paz entre nós, guerra aos senhores.

*Gustavo Noronha é economista do Incra

Fonte: Carta Capital