Além da polarização política entre os eleitores brasileiros, algo ficou evidente no atual debate ideológico nas redes sociais do país: os equívocos conceituais sobre o que é ser de direita, de esquerda e o que é o nazismo. O PT, principal partido no olho do furacão dos debates, por exemplo, é acusado de ser de direita por seus críticos à esquerda — que argumentam que a legenda coaduna com o capital –, enquanto alguns críticos à direita chegam ao cúmulo de afirmar que o partido tenta instaurar uma ditadura comunista-esquerdista no Brasil. Diante da vala comum em que foram jogados todos os partidos e políticos brasileiros, como defini-los do ponto de vista ideológico?
“Chamar o PT de comunista revela desconhecimento sobre o real significado do termo. Faz parte do jogo político rasteiro de desqualificar o adversário e amedrontar os incautos. Essa retórica foi usada no Estado Novo, na ditadura militar e está sendo usada novamente agora. De comunista o PT não tem absolutamente nada. A experiência do partido no governo mostrou seu apego pela economia de mercado e pela conciliação dos interesses das classes sociais”, afirma o sociólogo Wagner Iglecias, professor da Universidade de São Paulo (USP), explicando que o comunismo é um sistema político e econômico que faz parte da utopia de esquerda, sendo uma etapa posterior ao Socialismo, no qual os meios de produção seriam coletivizados, existindo somente uma classe social (a classe trabalhadora) e o Estado deixaria de ser necessário.
Para Iglecias, as principais características do pensamento de esquerda são a defesa da igualdade social e a crítica radical e profunda ao sistema capitalista. “As esquerdas, em geral, baseiam sua visão de mundo e sua atuação política tendo como princípio a igualdade entre os indivíduos. Esse é um objetivo impossível de ser atingido, em seus variados aspectos, em um regime capitalista, onde a mola mestra é a distribuição desigual e progressivamente concentrada dos frutos do trabalho humano. Não garantida a igualdade, para as esquerdas a própria concepção de liberdade fica seriamente ameaçada. Segundo esta perspectiva, não é possível ser livre num sistema onde não se garante sequer as mínimas condições de igualdade”, afirma.
Por outro lado, o professor da USP explica que a liberdade e a propriedade privada são as principais premissas do pensamento de direita. “Para liberais como Mises ou Hayek, a garantia dos direitos do indivíduo, especialmente o de cooperar com os semelhantes, empreender e conquistar e manter a propriedade privada, é o pilar fundamental para se construir uma sociedade próspera e livre”, diz.
Entre os partidos de esquerda brasileiro, o especialista enumera: o PCB, fundado em 1922 e que passou boa parte de sua história na ilegalidade; o PSB, fundado em 1947; o PCdoB, que surge no país em 1959, a partir de um racha internacional da esquerda; o PDT, criado em 1979; e o PT, fundado em 1980. “Mais recentemente surgiram novos partidos a partir de dissidentes do PT como o PCO (1994), PSTU (1995) e PSOL (2004)”, explica.
No espectro da direita, Iglecias afirma que as primeiras legendas surgiram ainda no Império, com os partidos liberal e conservador — e, no final do século XIX, surgiram os partidos republicanos estaduais que representavam as mesmas oligarquias rurais que controlavam os partidos liberal e conservador.
“No século passado emergiu a União Democrática Nacional (UDN), fundada em 1945, que caracterizou-se pela oposição radical ao intervencionismo estatal na economia e às utopias socialistas. Tinha apoio nos latifundiários e na classe média urbana alocada no setor privado da economia. Acabou extinta pelo golpe militar de 1964, mas viu vários de seus quadros voltarem à cena pública logo depois, quando o regime criou a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). No fim da ditadura a Arena deu origem ao Partido Democrático Social (PDS), que em 1985 rachou durante a eleição indireta de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Vários de seus líderes fundaram o Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas”, conta. Desde então o antigo PDS mudou de nome várias vezes, tornando-se o atual Partido Popular (PP).
O sociólogo diz que a partir do processo de redemocratização foram criados outros partidos de distintas linhagens de direita – alguns mais liberais do ponto de vista econômico, outros mais focados na questão da moralidade e das tradições e dos costumes -, como o Partido Liberal (PL), Partido da Reorganização da Ordem Nacional (PRONA), Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Partido Popular Socialista (PPS), Partido Social Cristão (PSC), Partido da República (PR), Partido Republicano Brasileiro (PRB), Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido Verde (PV), Partido Social Democrático (PSD), Solidariedade (SDD), PSDC, PRTB e PROS.
Em consonância, a cientista política Roseli Coelho, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) ressalta que por ter como valor essencial a defesa da igualdade, as forças políticas de esquerda devem se propor a diminuir ou mesmo eliminar a exploração dos trabalhadores. “Para atingir esse objetivo, essas forças propõem ampliar as políticas públicas que valorizam a força de trabalho, além de ampliar os direitos sociais”, diz. Segundo ela, também fazem parte do pensamento de esquerda o nacionalismo e a defesa da soberania, como instrumentos da construção de um Estado forte voltado aos interesses da classe trabalhadora. Na opinião dela, PT, PCdoB e PSOL representam a esquerda brasileira, enquanto o PDT e Rede Sustentabilidade são de centro-esquerda.
Na visão de Roseli, a direita valoriza a liberdade em detrimento da igualdade. “Baseada nessa ideia, a direita enfatiza a competição econômica, inclusive entre pessoas, defendendo que o mercado é instrumento de aperfeiçoamento da sociedade — e não o Estado. “Embora exista uma direita nacionalista, um partido de direita é francamente defensor da abertura de negócios e oportunidades para grandes empresas internacionais. Na era da globalização, a direita é a principal defensora das privatizações de empresas estatais”, analisa, mencionando que no nível dos costumes, um partido de direita é, tipicamente, contra ampliação de direitos e contra a inclusão de novos sujeitos nos direitos já existentes. Para a cientista política, o DEM e PSDB são os dois mais importantes partidos da direita brasileira, mas há pequenos partidos francamente reacionários que vêm ampliando sua influência. “O PMDB pode ser considerado um partido de centro-direita, apesar de ser constituído por algumas facções de direita propriamente dita”, afirma.
Roseli Coelho explica que o nazismo foi um movimento político da ultradireita alemã que propunha o nacionalismo exacerbado, a perseguição aos judeus e outros grupos sociais, fazendo uso generalizado da violência contra seus opositores. Ou seja, um regime totalitário. “Na forma como usamos atualmente, nazismo e fascismo são sinônimos para definir propostas ou formas de atuação baseadas nas práticas adotadas por aqueles regimes. Particularmente, as práticas da propaganda nazifascista, que era baseada sobretudo na mentira repetida milhões de vezes e na demonização do inimigo”, reflete.
A professora lembra que o Brasil tem mais de trinta partidos com representação no Congresso Nacional, além de mais alguns que não têm deputados ou senadores e que, em meio a uma profusão de propostas e alianças (firmadas nas campanhas eleitorais e também nas casas legislativas) é natural que haja confusões entre direita e esquerda. “A retórica dos partidos contribui para essa confusão, pois nenhum partido jamais ousará declarar-se publicamente como defensor dos ricos e poderosos”, frisa.
O sociólogo e cientista político Rudá Guedes Ricci, diretor-geral do Instituto Cultiva, diz que o pensamento de direita privilegia a liberdade individual e, na prática, defende a desigualdade como parte da natureza humana. “Alguns citam até Darwin para sugerir que só os mais fortes e competentes sobrevivem. Muitos consideram que a meritocracia é o divisor de águas – o que se trata de um pensamento elitista. O ápice desta lógica foi a agenda neoliberal que sugeriu que qualquer gasto social, a partir de políticas distributivas, geraria inflação. Qualquer aumento de impostos diminuiria a capacidade de investimentos privados e geração de emprego”, afirma. Na opinião dele, além dos partidos citado por Iglecias, no espectro da direita brasileira fazem parte ainda a legenda Solidariedade, parte do PSB e parte do PMDB.
“Há, contudo, uma distinção a fazer. O pensamento conservador reage às inovações, mas nem sempre é de direita. Há forte inclinação conservadora da população de baixa renda no Brasil, com traços de comportamento e valores que pregam o sexismo e até mesmo o racismo e que adotam a meritocracia e o hedonismo como referência, mas que não são de direita. Ao contrário, querem a intervenção do Estado para lhes promover e dar condições de igualdade para competir com os mais ricos. Assim, no Brasil temos pensamento conservador majoritário que, em grande medida, censura a lógica estatal e econômica liberal ou de direita”, pondera.
Ricci reforça que o nazismo e fascismo foram lógicas totalitárias de direita, de perseguição de todas as forças de esquerda, incluindo homossexuais e migrantes. “São práticas mobilizadoras que cerceiam a divergência política. Pregam a intolerância e geram forte sobreposição da noção de nação, Estado e governo. Quase sempre a orientação geral de comportamento vem de uma liderança carismática, que desenvolve um forte discurso emocional e moralista e de perseguição aos que consideram inimigos da pureza e da moral nacional. Na esquerda, o mais próximo disto foi o stalinismo, que perseguiu e executou adversários em seu próprio partido (caso emblemático do assassinato de Trotsky, quando de seu exílio no México, por Ramon Mercader) e instalou o terror instalado pela burocracia estatal e pela política secreta ou de segurança pública”, explica.
Na opinião dele, a grande confusão ideológica existente no Brasil se deve à transformação de nossos partidos políticos em máquinas eleitorais e não de formulação programática. “As siglas brasileiras não formam dirigentes e lideranças, mas cabos eleitorais e operadores da burocracia partidária e das negociações a partir dos escaninhos do Estado. Há autores contemporâneos que denominam esta tendência como a de formatação dos ‘Partidos Cartéis’ – que são organizações políticas que dependem totalmente do Estado para sobreviver, financiar suas ações, ter acesso aos meios de comunicação, profissionalizar seus quadros e se alimentar de obras e cargos suas bases eleitorais. Esta tendência levaria um partido a não se relacionar mais organicamente com a sociedade, mas com o aparelho de Estado”, diz, mencionando que a partir disso emergem lideranças partidárias apartadas dos interesses sociais, mas hábeis negociadores com cúpulas partidárias, criando um mundo fechado, focado na sobrevivência político-eleitoral e não na formulação e implantação de um programa.
Fonte: Diário do Centro do Mundo