Um ano depois, a sensação dos servidores públicos estaduais que estiveram na Praça Nossa Senhora de Salete no dia  29 de abril do ano passado é de que as feridas abertas no incidente que ficou conhecido como “Batalha do Centro Cívico” ainda estão longe de cicatrizar. Isso porque, apesar de mais de 200 pessoas terem se ferido na ação, até agora, ninguém foi punido. Dois processos que ainda tramitam apenas engatinham. Outro – que visava responsabilizar os comandantes da operação – foi arquivado pela Justiça Militar. O governo, por sua vez, sofre as consequências políticas provocadas pelo episódio.

Resultado de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR), um dos processos se arrasta na 5.ª Vara da Fazenda Pública, em Curitiba, mas ainda está em fase preliminar: os acusados apresentaram a defesa prévia, que ainda não foi analisada pela Justiça. O processo pede que o governador Beto Richa (PSDB), o então secretário de Segurança, Fernando Francischini (SD), e policiais militares que comandavam a operação sejam responsabilizados por improbidade administrativa.

Em razão do foro privilegiado de Richa e Francischini, a responsabilização criminal do caso foi desmembrada e enviada à Procuradoria-Geral da República (PGR). Documentos colhidos pelo MP-PR foram remetidos a Brasília. Até agora, a apuração da PGR não começou efetivamente, provocando protesto dos professores. Há indícios de omissão e abuso da força por parte do governo.

“As apurações sobre as responsabilidades precisam ser feitas, porque o que ocorreu naquele dia foi um atentado ao Estado Democrático de Direito planejado pela Sesp (Secretaria de Segurança Pública), em que o governo optou pelo confronto. São feridas que não fecharam e a classe nunca vai esquecer”, diz o professor Hermes Leão, presidente da APP-Sindicato. Nesta sexta-feira (29), a categoria promove uma marcha para lembrar um ano do incidente.

Prejuízo político

Por outro lado, o 29 de abril também atingiu em cheio o Palácio Iguaçu. Após o incidente, os secretários de Segurança (Francischini) e Educação (Fernando Xavier) deixaram os cargos. O comandante da PM César Kogut foi substituído e o então Chefe da Casa Civil, Eduardo Sciarra, perdeu força dentro do governo.  Ao mesmo tempo, Richa viu sua base na Assembleia encolher de 45 para 33 deputados. Ainda hoje,  o governo trabalha para minimizar o prejuízo político que o episódio causou.

O governador optou por não conceder entrevistas à reportagem. À época, ele chegou a se desculpar com os servidores, dizendo que “o mais machucado” havia sido ele. Posteriormente,  criticou a mobilização, argumentando que tudo não passou de uma orquestração para causar desgaste político ao seu governo. “O que eles queriam era confronto para gerar as cenas lamentáveis como as que aconteceram ali e me gerar esse desgaste político”, disse Richa, em dezembro de 2015.

Líder do governo na Assembleia, o deputado Luiz Cláudio Romanelli (PMDB)  avalia que os dois “lados” cometeram erros, que contribuíram para que o confronto ocorresse. “O primeiro

[erro] foi a radicalização do PMDB e do PT, que ‘enquadraram’ os servidores, no sentido de promover um enfrentamento para desgastar o governo. Foi uma ação contundente desses partidos. Eles insuflaram os servidores, quando a maior parte dos líderes sindicais queria negociar”, afirma o deputado. “Por outro lado, foi um erro ter um aparato policial tão excessivo. Entendo que a contenção deveria ter sido feita de forma menos agressiva.”

Diálogo

As negociações entre professores e governo foram retomadas neste ano, com reuniões periódicas conduzidas pelo atual Chefe da Casa Civil, Valdir Rossoni (PSDB), e a secretária da Educação, Ana Seres. É neste diálogo que o governo aposta para resolver as demandas e minimizar a imagem negativa.

“Os dois lados sofreram com esse episódio. O importante agora é a comunicação, o diálogo constante. A crise está posta e o sindicato reconhece. (…) Sofremos com aquele episódio, mas hoje estamos em uma situação privilegiada, se comparado a outros estados do país”, avalia Ana.

A APP, no entanto, afirma que, apesar da retomada das negociações, os mesmos problemas que motivaram a mobilização do ano passado estão se repetindo. “Não se avança um milímetro”, diz Leão, que prevê uma nova crise entre o governo e servidores.

O “29 de abril” em seis atos

Os acontecimentos que levaram à “Batalha do Centro Cívico” e o ponto de vista de alguns de seus personagens

O início

A mobilização que antecedeu os acontecimentos do dia 29 de abril começou meses antes, a partir de professores e servidores de escolas e universidades estaduais. No início de fevereiro de 2015, os professores alertaram que as escolas da rede estadual não tinham condições de abrir. Não só por falta de estrutura física em algumas delas, mas também por falta de professores temporários e outros profissionais e de dinheiro para o pagamento de despesas básicas. A primeira fase da greve foi deflagrada em assembleia realizada no dia 7 de fevereiro. A pauta de reivindicações tinha mais de 20 itens, mas acabou ganhando um a mais e que, dias mais tarde, viraria uma das principais bandeiras do movimento: o projeto que o governador Beto Richa (PSDB) enviou à Assembleia Legislativa para reformar a Paranaprevidência. Na opinião dos servidores, a mudança colocava em risco futuras aposentadorias.

No dia 10 de fevereiro, quando foi formada a comissão geral que votaria o projeto de mudanças na Paranaprevidência, professores e também outros servidores estaduais ocuparam a assembleia, impedindo a continuidade do processo. No dia 12 de fevereiro houve uma tentativa dos deputados de continuarem com as discussões em outra sala da Assembleia. Eles entraram no prédio a bordo de um camburão. O episódio inflamou os ânimos dos manifestantes, o que fez com que os parlamentares desistissem da ideia. No mesmo dia, final da tarde, os servidores que ocupavam o plenário da Casa Legislativa começaram a deixar o local, mas prometeram continuar o movimento de oposição de reforma na Paranaprevidência.

No dia 25 de fevereiro, Beto Richa recuou da ideia de votar a proposta em comissão geral e disse que o projeto, apesar da pressa de ajuste fiscal das contas do estado, seguiria os trâmites normais da Assembleia, dando espaço para o diálogo com os servidores.

Ainda em março, após uma negociação com o governo do estado que gerou uma carta de compromissos, a APP-Sindicato, que representa os professores, convocou uma assembleia e a greve foi suspensa. A categoria e os demais servidores, porém, continuaram acompanhando as discussões da Paranaprevidência.

“Aquele dia revelou a face violenta, truculenta e vingativa do estado”

Ângela Alves Machado, Professora

“A ferida não vai cicatrizar nunca. Não tem remédio, não tem tempo que cure. Eu, pelo menos, vou sempre lembrar deste dia. Vou lembrar quem foram os algozes, mesmo porque o governo continua massacrando a educação de outras maneiras. A gente lutou e não foi em vão. Essa luta precisa persistir.

Pessoalmente, o dia 29 foi um divisor de águas na minha vida. Vi que não podia abandonar minha militância na educação. Nunca fui uma militante fervorosa, nem radical, mas sempre estive presente em mobilizações, conscientizando alunos e pais. Mas me limitava a esse papel. Agora, acho que despertou algo em mim que não tem volta. Eu preciso estar sempre disposta para a educação.

O Dia 29 significa um dia a mais de luta. Tivemos uma derrota parcial, mas ganhamos em cidadania, mostramos para o Brasil que aqui, neste estado, há pessoas de coragem que lutam, que se dispõem a estar presentes nos movimentos sociais lutando pelos direitos do cidadão.

Aquele dia revelou a face violenta, truculenta e vingativa do Estado. Eles não engoliram a ocupação da Assembleia Legislativa no dia 12 de fevereiro. O que houve no dia 29 foi uma vingança pela primeira etapa da greve. O Estado mostrou o quanto eles querem que as pessoas estejam afastadas do Centro Cívico.”

Adesões

A insatisfação quanto ao projeto fez com que outras categorias aderissem ao movimento. O Fórum das Entidades Sindicais – que congrega sindicatos de 14 categorias, como a dos servidores da saúde e a dos agentes penitenciários – chegou a deflagrar uma greve geral, que teve adesão em várias regiões do Paraná.

Nos dias que antecederam a segunda tentativa de votação da reforma da Previdência Estadual, os servidores montaram acampamento com centenas de barracas na Praça Nossa Senhora de Salete, em frente à Assembleia e ao Palácio Iguaçu. No dia da sessão, mais de 20 mil servidores estavam no local, segundo entidades sindicais.

“Penso que tudo que aconteceu é irreparável”

Claudio Franco, agente penitenciário

“Quando você ingressa em uma profissão, pensa na carreira para prestar um bom trabalho, ser bem visto, seguir um caminho de progresso. O ato do dia 29 me fez repensar muitas coisas. Para minha carreira como profissional, foi ruim. Sem querer, você fica com uma imagem de agitador, como se o fato de eu ter estado na manifestação fosse um ato criminoso, que desmerecesse a história que eu tenho como profissional, a minha competência. Você fica marcado.

Outra preocupação que tive era o que os meus colegas que não estavam na manifestação iriam pensar de mim. Confesso que voltei a trabalhar meio escondido, fiquei com vergonha que as pessoas me vissem com bandagem no rosto. Mas a minha surpresa é que meus colegas me aplaudiram. Tornei-me uma referência para eles. Achei impressionante.

Penso que tudo que aconteceu é irreparável. Todas as categorias têm aspirações e não se consegue nada de um governo sem o diálogo. Ou seja, todas são obrigadas a sentar com o governador e pedir estrutura, salários… essas coisas. Mas porque não tem outro jeito. Atualmente, se houvesse uma opção para evitar conversar com o Beto Richa, todos os servidores aceitariam.

Mas há um sopro de justiça no país. Muita gente que se acha intocável está caindo. Quem sabe agora também. Eu esperava que já tivesse ocorrido justiça.”

Naquele dia…

“Eu estava a três metros, mais ou menos, da barricada dos policiais, no meu dia de folga. Com a roupa de agente penitenciário, que eu paguei com meu dinheiro. Então, ouvi bombas, correria, gritaria e percebi que os policiais estavam avançando. Uma senhora caiu atingida, e eu a ajudei a levantar. Meu óculos caiu. Quando abaixei para pegar, botei a mão no rosto e virei. Quando virei, vi um policial com escopeta. Quando saia dali, senti o impacto e o estouro. Não sabia que grau tinha sido atingido e nem sabia se era o tiro do mesmo. Rodopiei. Parei por um minuto. Tentei entender. Neste momento, imagino que um fotógrafo fez a imagem. Vi muita gente ensanguentada, pessoas correndo e meu ouvido zunindo. Só vi como meu rosto estava quando, minutos depois do acontecido,  meu filho mandou uma foto minha com a marca no rosto que já estava circulando.”

O acirramento

O descumprimento de parte dos compromissos firmados em março e a marcação da votação do projeto da Paranaprevidência para a semana do dia 27 de abril fizeram os professores retomar a greve e convocar os demais servidores para protestar na Praça Nossa Senhora de Salete. Ainda no sábado, 25, mais de 1,1 mil policiais foram chamados para um cerco à Assembleia, como forma de garantir a votação e evitar uma nova ocupação do plenário da Casa.

O confronto

O confronto – que ficou conhecido como “Batalha do Centro Cívico” – começou pouco depois das 15 h de 29 de abril, quando um pequeno grupo de manifestantes tentou romper o cordão de isolamento feito por policiais militares em frente a Assembleia Legislativa. Os agentes reagiram, disparando balas de borracha, bombas de gás e de efeito moral e investindo contra a multidão. Um caminhão blindado deu cobertura, disparando jatos de água para ajudar a dispersar os manifestantes. Uma névoa de gás e fumaça tomou conta do Centro Cívico, dando contornos ainda mais dramáticos ao episódio.

A votação

Enquanto a polícia avançava sobre manifestantes do lado de fora da Assembleia Legislativa, no plenário da Assembleia, o presidente da Casa, Ademar Traiano (PSDB), optou por tocar a sessão de forma ininterrupta. “As bombas são lá fora, vamos tocar a votação aqui dentro”, disse aos pares, que pediam para que a sessão fosse suspensa.

Os 30 parlamentares governistas pareciam alheios ao clima de guerra e aos estrondos que podiam ser ouvidos do lado de dentro. Eram vistos rindo ou fazendo piadas, como em uma sessão normal. Deputados da oposição deixaram o plenário e tentaram descer a rampa que dá acesso à praça, mas não conseguiram evitar o massacre. Líder do governo, Luiz Claudio Romanelli (PMDB) foi cobrado. Disse que defendia a interrupção da sessão, mas que nada podia fazer. O projeto foi aprovado por 31 votos a 20.

O socorro

A “Batalha do Centro Cívico” terminou com mais de 237 feridos: 213 manifestantes, 3 profissionais de imprensa, 1 deputado e 20 policiais. Conforme as bombas e tiros eram disparados, as pessoas corriam em direção à prefeitura, onde um “hospital de campanha” foi improvisado. Médicos e enfermeiros, além de cidadãos comuns, se apresentaram para ajudar a socorrer as vítimas de balas de borracha, estilhaços de bombas, spray de pimenta e escoriações diversas.

“Parecia um campo de guerra”

– Fernanda Pohl, médica do Samu

“O dia 29 de abril era um dia comum. Fui para o Samu. Logo o pessoal dos bombeiros perguntou se teríamos ambulância no local. A princípio não havíamos sido acionados, mas que avisei que poderíamos mandar se houvesse necessidade. Foi o que aconteceu. Fomos em três para lá no começo da tarde. A gente já viu que tinha muito policial e manifestante. Ficamos atrás do Palácio Iguaçu, onde pediram para ficarmos. A hora que começou o confronto, por volta das 15h, fomos para prefeitura, que já havia sido isolada para atendimento das vítimas.

Havia muitas pessoas machucadas, intoxicadas, olhos vermelhos, feridas com tiros de bala de borracha. A gente via a revolta dos professores, dos servidores que protestavam. A gente via a decepção destas pessoas com o que estava acontecendo. O que me marcou muito foi o número de pessoas que precisavam de atendimento. Isso ficou muito marcado na minha história. Chegamos às 14h e saímos de lá por volta das 21h.

A gente se sente meio impotente vendo tudo acontecendo. Mas a gente via que nem os policiais estavam satisfeitos em fazer aquilo. Eu saí triste de lá. Parecia um campo de guerra.”

Fonte: Gazeta do Povo