“Morte à inteligência! Viva a morte!” Com essas palavras, o general Millán Astray, líder da Legião Estrangeira, atacou o então reitor da Universidade de Salamanca, Miguel de Unamuno, após seu discurso contra a violência dos falangistas-franquistas, no início do ano letivo de 1936, logo após a vitória de Franco e seu avanço sobre a Espanha. Fascistas sempre foram contrários à inteligência, à crítica e à reflexão.

A liberdade de pensamento incomoda, assusta e causa pânico àqueles que defendem ditaduras. A possibilidade de extrapolar os limites e de mostrar algo novo, e que também pode colocar o poder abaixo, é o maior temor da personalidade autoritária. Tomada pela paranoia, acredita ser possível controlar o conhecimento e o pensamento.

É o que vivemos no atual cenário brasileiro. Em pleno século XXI, e depois de uma longa ditadura, é espantoso que o movimento Escola Sem Partido ganhe cada vez mais força no cenário brasileiro. Mais triste ainda é que um movimento que prega abertamente o fim da crítica e da reflexão na educação receba o apoio de diferentes setores da sociedade, inclusive de alguns ligados à educação.

O discurso do Escola Sem Partido se assemelha ao proferido por grupos fascistas no começo do século XX e por aqueles que defenderam regimes ditatoriais na América Latina a partir dos anos 1960. Regimes de exceção afirmam que existe um inimigo interno que deve ser combatido e eliminado da cena política. Esse inimigo ameaçaria a todos e colocaria a nação em perigo, trazendo a desunião, o fim dos valores vistos como corretos e moralmente aceitos, degenerando o que restava de bom.

Esse era o discurso que norteava a ação fascista e, infelizmente, é o que embasa a do movimento Escola Sem Partido. A suposta neutralidade do projeto cai por terra quando impede o professor de relacionar o conteúdo a assuntos da atualidade. Como trabalhar a crítica e a reflexão dos estudantes se não é possível sequer falar da atualidade?

No site do movimento, encontramos na seção “Flagrando o doutrinador”, a seguinte afirmação “você pode estar sendo vítima de doutrinação ideológica quando seu professor: se desvia frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional.” Isso vai contra uma educação que estimula o pensamento e a reflexão, pois torna o processo educativo em algo meramente utilitarista e descolado do mundo.

O objetivo da escola seria apenas transmitir dados, conteúdos e ensinar disciplinas, mas não a pensar, já que esse ato – o pensar – exige uma reflexão mais séria sobre seu próprio mundo, relacionando-o com as informações apreendidas na escola, mas também fora dela. Estudantes aprendem em todos os lugares. É a partir desse diálogo que surge a crítica e a reflexão. Interessante que em todas as entrevistas e debates, o ideólogo do Escola Sem Partido, Miguel Nagib, tenta desvincular o projeto apresentado em diferentes casas legislativas do site do movimento, como se fossem coisas totalmente distintas.

Mas, para compreendermos melhor o projeto, é necessário conhecer o movimento e suas ideias. Na página do movimento, além da seção “flagrando o doutrinador”, a qual poderíamos questionar se não seria, ela própria, permeada por um viés ideológico, encontramos orientações de como denunciar professores. A lei sequer foi aprovada – e mesmo que aprovada, poderá ser questionada sobre sua constitucionalidade – e já existem orientações de como denunciar docentes.

Em alguns casos, professores já foram afastados de suas funções por conta de denúncias. Percebe-se, assim, muitas semelhanças não só ao discurso, mas também à prática de regimes de exceção no embasamento do Escola Sem Partido, ao estimular o denuncismo e o ataque à imagem de profissionais da educação. No site do movimento, é possível encontrar denúncias contra livros didáticos, vídeos de professores em sala de aula e materiais para impressão.

O movimento faz um grande malabarismo para dizer que defende a liberdade e que o professor terá seus direitos assegurados, mas estimula o ódio e a perseguição a docentes, como diz uma postagem em uma das redes sociais do movimento: “Escola sem partido é o antibiótico que vai acabar com as bactérias da educação brasileira.” Conta, para tal empreitada, com a parceria do Movimento Brasil Livre e o apoio de políticos que apresentam o projeto em diferentes localidades.

Seria mesmo um movimento sem partido? O movimento não prega o debate, mas o extermínio, a eliminação. Comparam professores a bactérias, assim como nazistas comparavam judeus e comunistas a ratos. Um dos principais pontos das “proibições” do projeto é a que aborda o direito dos pais sobre a educação moral dos seus filhos. Esse aspecto pode parecer nobre para corações desavisados, mas é uma grande falácia.

A noção de moralidade é controversa, já que existem várias interpretações sobre o que é ou não moral. Em uma sala com 40, 50 alunos isso é uma regra. E no saco da moralidade, tudo pode entrar, como o racismo, a homofobia, a discriminação de classe e o culto à violência. Um pai branco, rico e heterossexual pode se achar moralmente superior a negros, pobres e homossexuais e afirmar que é necessário defender a sua família contra ações que acredita serem uma afronta à moral, como dois homens se beijando na rua.

Ele afirmará, do ponto de vista da moralidade, que não é obrigado a ver aquilo. Agora, esse mesmo pai pode estimular seu filho a escrever isso em uma redação do ENEM. Uma família pode achar que sua tradição judaico-cristã é a única correta e que todas as outras não passam de uma mitologia ou, ainda pior, um culto ao demônio. Pelo que determina o Escola Sem Partido, o professor não poderá sequer problematizar essa visão do aluno, pois iria contra a “moralidade” dos pais.

Como trabalhar com escravidão e diferentes culturas, como a indígena, a africana ou a oriental? Trabalhar tais assuntos, previstos em lei, pode se tornar uma grande dor de cabeça para docentes. Como exemplo, experimentem levar tambores para ensinar cultura e religiosidade africana. Provavelmente, alguns responsáveis irão reclamar, afirmando que esses assuntos devem ser discutidos em casa, não na escola.

Os defensores do Escola Sem Partido afirmam que seguem a lei, quando, na verdade, a desrespeitam de cabo a rabo. Apontam que a Convenção Americana de Direitos Humanos garante a questão da moralidade familiar como um direito intocável em sala de aula. Porém, esquecem de mencionar um protocolo adicional à própria convenção. O protocolo de San Salvador, do qual o Brasil é signatário, diz o seguinte em seu artigo 13: “Os Estados Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm, também, em que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista, conseguir uma subsistência digna, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades em prol da manutenção da paz.”

Na parte da responsabilidade dos pais, o artigo 4 diz o seguinte: “De acordo com a legislação interna dos Estados Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação a ser dada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima.” Ou seja, os valores morais dos pais não são intocáveis e não podem colidir com princípios democráticos, que defendam a pluralidade de pensamento e, o grande temor desses grupos, os direitos humanos. Os defensores do Escola Sem Partido também afirmam que compete apenas aos pais a educação e que cabe a escola apenas ensinar. Batem no peito para dizer que quem educa são os pais e que a escola apenas ensina.

O artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação diz o contrário: “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Por fim, o que aproxima os defensores do Escola Sem Partido aos partidários de regimes de exceção e autoritários é a paranoia e a histeria. Para eles, o mundo está ameaçado por uma grande conspiração comunista e que todos os espaços educacionais estão tomados por doutrinadores marxistas. Compete a todos, não apenas educadores, defender uma educação plural e democrática, que vise a emancipação da humanidade. Unamuno, ao enfrentar os fascistas na Universidade de Salamanca, afirmou que “acabo de ouvir o necrófilo grito de ‘viva a morte!’, que para mim é como gritar ‘morte à vida’”.

O projeto Escola Sem Partido é a morte de uma educação livre e aberta, é a morte da crítica e da reflexão. Porém, para a tristeza de seus defensores, sempre existirão aqueles que darão a vida pela causa da liberdade. Sempre teremos aqueles que continuarão a formar mentes críticas e dispostas a mudar o mundo e a transformá-lo. Contra isso, eles nada podem fazer. Viva a inteligência!

Por: Daniel Trevisan Samways

Fonte: Carta Capital